Educação, saúde, seguridade social, previdência social, ciência e tecnologia, cultura, comunicação social, dentre outros temas, deixariam de ser tratados pela Constituição, sendo disciplinados pela legislação ordinária. Essa é a essência da Proposta de Emenda à Constituição 341, de 2009, em tramitação na Câmara dos Deputados. Pela emenda, a Carta Fundamental passaria a contar com menos de 80 artigos. Tal enxugamento é elitista, maléfico à sociedade e desnecessário, além de padecer de inconstitucionalidade. (1)
Conquistas sociais como a gratuidade do ensino público, o piso salarial nacional dos professores, a autonomia das Universidades e a obrigatoriedade da União, estados e municípios aplicarem, no mínimo, 18% e 25% da receita, respectivamente, em educação, deixariam de constar do texto constitucional. O mesmo aconteceria com a receita mínima a ser aplicada em saúde e em cultura, bem como o regime de previdência social, incluindo as garantias dos aposentados, para ficar em alguns exemplos.
Trata-se de uma drástica intervenção na ordem constitucional, retirando, em um só golpe, direitos constitucionais de natureza social já sedimentados na cultura jurídica e no patrimônio dos brasileiros. Direitos sociais que possuem a função de exigir a ação do poder público no sentido de diminuir as desigualdades, bem assim de resguardar a sociedade contra a ditadura de maiorias ocasionais no parlamento.
Mudança com essa dimensão não é admissível sem uma prévia e cabal demonstração, com estudo científico que adquira o consenso da comunidade jurídica nacional, de sua necessidade e utilidade. Tal não ocorre nesse caso, a julgar pelas justificativas apresentadas no parecer do relator da matéria, que opinou favoravelmente à admissibilidade da proposta. Da leitura do parecer, a partir das contradições nele contidas, expostas no parágrafo seguinte, conclui-se pela inexistência de fundamento plausível para a pretendida lipoaspiração do texto constitucional.(2)
O relator admite a “extraordinária participação popular” na Constituinte, mas aduz que a Constituição é detalhista em exagero. Após citar Ulysses Guimarães, ao batizar a Constituição como cidadã, conclamando: “viva a vida que ela vai defender e semear”, o parecer afirma que a inviabilidade da Constituição é notória, por causa das emendas que provocam insegurança jurídica e pela ineficácia das normas. Depois de enunciar que a rigidez de uma Constituição serve para assegurar a solidez do ordenamento jurídico, o relator prega que a Constituição deve se restringir a disciplinar o Estado e a relacionar os direitos fundamentais. E, mesmo reconhecendo que há a tendência contemporânea para a adoção de constituições analíticas e extensas, considera que a Constituição sintética possui mais chances de limitar a discricionariedade do Estado.
As contradições constantes no texto do parecer são suficientes para concluir pela inadequação da proposta. A Constituição é detalhada justamente por decorrência da ampla participação popular no processo de sua elaboração. A Constituição é viável exatamente porque ela não é apenas uma norma de Direito, mas também um projeto de nação, que deve ser defendido e semeado. Para emendar a Constituição, são necessários procedimentos especiais e quórum qualificado, inexistente na elaboração de leis, donde se conclui que a norma constitucional assegura maior segurança do que o texto legal. Com a evolução da sociedade na história dos povos não mais é suficiente um texto constitucional sintético, limitado ao conteúdo das Constituições de três séculos atrás. A não efetividade de diversas normas constitucionais não é motivo para a sua supressão, mas deve servir como orientação para a ação da sociedade e do Estado no sentido de seu cumprimento. Em outras palavras, a supressão da norma constitucional, antes de contribuir para a “eficácia” do direito, irá distanciar o Estado de seu cumprimento, afastando o tema da agenda política nacional.
Como se vê, a tentativa de reduzir o texto da Constituição não possui justificativa que lhe dê calço, pois não trará vantagens materiais à sociedade brasileira. Apenas facilitará a vida do parlamento, que poderá dispor com facilidade sobre as matérias retiradas da Constituição, sem a exigência do quorum qualificado atualmente exigido para alterar matéria constitucional, aumentando o poder dos parlamentares e diminuindo a proteção da sociedade contra eventuais maiorias congressuais.
A discussão doutrinária que se faz, em torno da questão, é sobre o modelo de Constituição mais adequado ao Brasil. O sintético, como a americana, que cuida basicamente da regência do Estado, organizando-o e limitando seu poder, por meio da estipulação de direitos e garantias fundamentais; ou analítico, como implementado por países da Europa ocidental, constitucionalizando os diversos aspectos da vida social, no que tange à destinação, formação e funcionamento do Estado.
A Constituição não pode se ressentir da proteção dos direitos sociais e difusos, considerados como direitos de segunda e terceira gerações ou dimensões. Com base na ordem histórica em que passaram a ser reconhecidos, os direitos humanos são catalogados, por Bobbio, em gerações (3). Os direitos de liberdade seriam os de primeira geração, de caráter negativo, pois apresenta o rol de matérias sobre as quais o Estado não deve intervir; os direitos de igualdade, de segunda geração, são de ordem positiva, pois indicam as ações que o Estado deve prestar em benefício do cidadão; e os direitos dos povos e da natureza, os de terceira e, para alguns, de quarta, geração. Gerações ou dimensões históricas, o certo é que os direitos fundamentais podem ser estudados dessa forma, de forma didática, acrescentando que eles são partes de um todo e que não há supremacia ou primazia entre os mesmos. Como salientam os estudiosos da matéria, “a conquista dos direitos sociais, econômicos e culturais — denominados direitos de igualdade — marca uma nova etapa nessa trajetória histórica, quando se consagra a segunda dimensão dos direitos humanos (4).
Os direitos surgidos no início da idade moderna possuíam feição formal, como o direito à liberdade e à igualdade perante a lei. São direitos negativos, pois apresenta ao Estado o que ele não pode fazer, vedando a intervenção na vida pessoal do cidadão. Impede que o Estado invada a esfera privada. Os direitos de segunda geração — ou segunda dimensão histórica — surgem em momento posterior à revolução industrial, que forma uma classe de trabalhadores explorados, a merecer a proteção do Estado. O direito de proteção formal do Estado deveria ser complementado pelo direito à prestação material. Nasce o welfare state, ou estado social, para assegurar um mínimo de existência digna a todos e o acesso de igual oportunidade para o desenvolvimento das potencialidades de cada um. Cuidou-se de uma forma de humanizar o regime liberal de mercado, como resposta ao movimento socialista verificado no início do século passado.
A Constituição brasileira de 1934 traz um capítulo sobre a Ordem Econômica e Social, constitucionalizando a matéria, tal qual fizeram diversas constituições do mundo elaboradas no mesmo período. Bom esclarecer que a Constituição brasileira do Império, de 1824, assegurava os socorros públicos, a instrução primária gratuita aos cidadãos e a existência de Universidades; a primeira Constituição Republicana, de 1891, também garante o ensino primário gratuito. Contudo, apenas com a Constituição de 1934 é que a ordem constitucional passa a conter padrões de políticas sociais, com capítulo próprio sobre a ordem econômica e social. As Constituições de 1934 a 1969, “no que tange ao enfrentamento das questões sociais, apresentaram normatividade suficiente para colmatar as políticas públicas no sentido de adequar seus programas e atividades ao paradigma da dignidade humana.” (5). A realidade política, com instabilidade institucional e distanciamento democrático, impediu fosse firmada tal compreensão no ideário dominante do país. Tal construção permanece sendo feita, tendo a Constituição atualmente em vigor importante tarefa, em sendo ponto de referência de uma sociedade mais justa e em tendo sido elaborada com ampla participação da sociedade.
A Constituição de 1988 possui a participação popular em sua impressão digital. O Regimento Interno da Constituinte fez previsão, em seu artigo 24, das emendas populares. As emendas necessitavam de apoio de, no mínimo, trinta mil eleitores, em listas organizadas por, no mínimo, três entidades associativas. “As folhas dos abaixo-assinados tinham marcas de suor”, registrou-se (6). Também foram possíveis sugestões apresentadas por Assembleia Legislativa, Câmaras de Vereadores, Tribunais e entidades da sociedade civil (art. 13).
Os movimentos sociais desejaram manter um diálogo sincero com a ordem pública, menos por acreditar na efetividade imediata dos direitos previstos constitucionalmente, mais por buscar transformar em normas valores amplamente compartilhado por setores populares. A pretendida constitucionalização dos direitos sociais não representava garantia de sua eficácia, mas a possibilidade de uma nova agenda política, dependendo sua implementação não apenas da ação das autoridades, mas da permanente cobrança da sociedade civil organizada e das lutas populares que deveriam ser travadas.
As emendas populares apontavam para a “publicização de matérias até então prepoderantemente privadas” (7). Insistiam na constitucionalização dos direitos sociais como forma de reação política contra o elitismo e contra os severos problemas sociais brasileiros. A Constituição de 1988 é detalhista e analítica por uma necessidade social e por uma exigência da participação popular.
Constata-se a ampla defesa doutrinária, durante a década da redemocratização do país, pela Constituição extensa, que disciplinasse não apenas as matérias ditas de constitucionalismo tradicional. Miguel Reale foi uma dessas vozes, para quem “seria ilusória uma disciplina normativa intencionalmente sumária, deixando para a legislação complementar ou ordinária a solução das candentes questões relativas: a) ao indivíduo, que não pode ser concebido abstratamente como cidadão, mas como “homem situado” dentro de qualidades cívicas, econômicas e sociais; b) à sociedade civil, cada vez mais plural na raiz de sua substância (...); c) ao Estado, que deixa de ser alheio à vida individual e coletiva para se tornar cada vez mais dela participante” (8). O jurista adverte que a importação do modelo norte-americano constituiria “triste forma de alienação jurídica” (9).
José Alfredo Baracho chega a argumentar que a própria Constituição americana possui seu texto ampliado pela via interpretativa da Suprema Corte. Também ressalta a tendência do cidadão brasileiro por uma Constituição analítica (10). É possível afirmar a “tendência histórica de ampliação do âmbito de extensão das Constituições” (11). No mesmo sentido, Paulo Bonavides encontra princípios da ordem econômica e social na maior parte das constituições ocidentais surgidas no pós-guerra, englobando temas como família, educação, além de postulados econômicos e sociais (12).
Em decorrência desse cenário, o Brasil possui uma Constituição programática e analítica; isso significa que além de apresentar o catálogo de direitos fundamentais e a disciplinar e organizar o Estado brasileiro, a Constituição regulamenta diversos aspectos da vida social e econômica. A Constituição brasileira protege o meio ambiente, a previdência, a família, a criança e o adolescente, os índios, a universalização da saúde e a educação de qualidade. Essa é a tradição jurídica brasileira. Como visto, desde a Constituição de 1934, os direitos sociais, conhecidos como direitos humanos de segunda geração, são albergados pela Constituição.
A doutrina constitucional apresenta tal fato como um avanço, por não se contentar com os direitos formais de primeira geração. As Constituições dos países da Europa ocidental, especialmente Espanha e Portugal, também são analíticas, cuidando de diversos temas, para além de simplesmente organizar o Estado e catalogar os direitos individuais.
Tornar a Constituição brasileira sintética, importando modelos alienígenas, não se coaduna com a tradição do Direito brasileiro de regulamentar a exaustão as matérias. A Constituição não é apenas um texto normativo, como também a expressão cultural de um povo. A atual ordem constitucional foi instituída com ampla participação popular e social, resultando no texto de 1988. O Congresso Nacional atual possui apenas o poder constituinte reformador, não possuindo poderes para apagar essa relevante conquista histórica da sociedade brasileira.
Diversos direitos e garantias constitucionais, expressamente previstos, não são cumpridos. Retirá-los do texto da Constituição vai afastar ainda mais o momento da realização prática dos mesmos. A sociedade exige o cumprimento das normas constitucionais, tarefa sobre a qual deveriam se debruçar todos os agentes públicos, inclusive os parlamentares.
Os direitos sociais não podem ser amesquinhados, sob pena de agressão ao princípio da “proibição do retrocesso”, impeditiva da subtração ou diminuição injustificada dos direitos decorrentes da democracia econômica, social e cultural, “em violação ao princípio de proteção e de confiança e de segurança dos cidadãos” (13). Tal ordem democrática impõe ao Estado o desenvolvimento de atividades conformadoras e transformadoras, evoluindo no sentido de aproximar a realidade do texto constitucional, bem assim contém uma autorização para a adoção das medidas necessárias a implantação da justiça social, com a justificativa de execução das normas constitucionais.
Não possui qualquer sentido argumentar que a Constituição deve ser reduzida porque as normas não são cumpridas, porque tal decorre por diversos fatores, distintos do status constitucional das mesmas. Ademais, tais postulados constitucionais devem ser entendidos como mandados de otimização, ou standart normativo, a ser cumprindo em sua inteireza tanto quanto possível, tanto quanto seja exigido pela pressão social e possível em cada momento histórico (14).
Não se olvide que o fato político condiciona e impulsiona a norma Constitucional. Por outro viés, as Constituições também influenciam a história política, pois “vem a ser, elas próprias, igualmente, geradoras de fato político” (15). A supressão de relevantes matérias do texto constitucional impede possa operar esse fenômeno, embaraçando o avanço progressivo rumo a realização desses valores hoje previstos constitucionalmente.
O avanço ocorre com a pressão social, sendo o Supremo Tribunal Federal natural desaguadouro da insatisfação em decorrência da não concretização dos direitos constitucionalmente previstos. Argumenta-se que o enxugamento deve ocorrer para diminuir a pauta do STF. A justificativa é insuficiente. Com a exigência do requisito de repercussão geral, o número de processos que serão julgados pela Corte Suprema já está sendo reduzido (16). De qualquer modo, tanto melhor que a sociedade brasileira, de modo civilizado e pacífico, solicite ao STF a solução das controvérsias, ao invés de buscar formas não jurídicas de resolução de conflitos.
Além de inadequada e desnecessária, a PEC 341, de 2009, é inconstitucional. A supressão de 189 artigos da Constituição transforma a proposta, que é formalmente uma emenda à Constituição, em autêntica revisão constitucional. O próprio parecer do relator, que foi favorável à admissibilidade da matéria, reconhece que se faz necessária tal revisão detalhada do que é digno de status constitucional ou não. A revisão constitucional só foi admitida por uma única oportunidade pela Constituição em vigor, já tendo sido realizada. Não é possível propor uma ampla revisão da Carta Constitucional por meio de uma Emenda.
A proposta também padece de inconstitucionalidade por ilegitimidade. O Congresso Nacional não é legítimo para realizar a pretendida lipoaspiração da Constituição, diante da origem popular da Constituição em vigor. Somente uma nova constituinte, com ampla participação da sociedade, teria condição histórico-jurídica para empreender a tarefa de uma reformulação tão drástica da Carta da República.
Assim, a Constituição deve amparar não apenas os direitos e garantias individuais, que são direitos de libertação do poder e direitos à proteção do poder. Devem também assegurar os direitos sociais, que são direitos de libertação da necessidade e direitos de promoção. A limitação jurídica do poder e a organização do Estado social, eis as tarefas irrenunciáveis do constitucionalismo no atual momento histórico. Não possui adequação, como pretende a PEC 341/09, o retorno ao teor da Constituição brasileira do Império, de 1824, segundo a qual “é só constitucional o disciplinamento do poder político e os direitos políticos e individuais” (art.178).
A Constituição analítica permanece necessária, do ponto de vista histórico, como instrumento de luta dos diversos grupos sociais e como agenda mínima a ser concretizada pelo Estado brasileiro, inclusive através de ações jurídicas. A Constituição do terceiro milênio não pode se limitar ao conteúdo objeto das Constituições de três séculos atrás, devendo se expandir, versando sobre os direitos sociais, coletivos e difusos e permitindo o avanço social por intermédio da constitucionalização do projeto de nação.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) A PEC 341, de 2009, possui a autoria do Deputado Regis de Oliveira e demais subscritores.
(2) O Parecer foi prolatado pelo relator da matéria na CCJ da Câmara dos Deputados, parlamentar Sérgio Carneiro.
(3) BOBBIO, Norberto, A Era Dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
(4) MARQUES, Alci; Rodrigues, Chagas; Farias, Edilson; Iniciação Aos Direitos Humanos, ICF. Teresina: 2007, p. 52.
(5) GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Direitos Fundamentais Sociais. Juruá Editora, Curitiba: 2006, p. 116.
(6) MICHILES, Carlos. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 105.
(7) GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Ob. Cit. 2006, p.153.
(8) REALE, Miguel. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Vol. 60-61, 1985, UFMG, BH, ps. 17-18.
(9) REALE, Miguel. Ob. Cit., p. 18.
(10) BARACHO. José Alfredo. Teoria Geral das Constituições. Revista Brasileira de Estudos Políticos, UFMG, vol. 60-61, 1985, os 36-37.
(11) RUFFIA, Paolo Biscarreti de. Direito Constitucional. Instituições de Direito Público. Ed RT., SP, 1984, p.214.