Clicksergipe - Onde Sergipe é a notícia!
       



O poder que mais falhou no Brasil

5/9/2009

Rui barbosa deixou escrito que a “majestade dos tribunais se assenta na estima pública”. Essa estima, Rui Barbosa, como homem público, auxiliou o Judiciário a conquistar. Com a Constituição de 1891 em vigor, foi o primeiro a sustentar caber aos tribunais o exame da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos.

Juízes e desembargadores passaram então a responder a processos criminais por terem declarado a inconstitucionalidade de leis e de atos administrativos estaduais e federais. No particular, os magistrados ganharam o apoio e o respeito da população, que precisava de órgãos isentos para dirimir controvérsias.

No curso da vida republicana verificaram-se, porém, variações acerca da credibilidade no Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Judiciário e inspirado na Suprema Corte norte-americana. Por aqui, o critério de arregimentação de ministros para o STF é sempre criticado, da mesma maneira que a vitaliciedade e a ineficácia do mecanismo tendente a distanciar o ministro de alguma coloração político-partidária. Nos EUA, durante anos, vigorou o detestável modelo do juiz wasp (branco, anglo-saxão e protestante), que a latina Sonia Sotomayor acaba de derrubar.

João Mangabeira, jurista e político de muito respeito, preso mais de ano por resistir à ditadura do Estado Novo e falecido em 27 de abril de 1964, afirmou que o STF havia sido “o poder que mais falhou na República”. A respeito dá para imaginar o que diriam hoje Barbosa e Mangabeira, seu discípulo e conterrâneo dileto. Nos últimos 40 anos, o Pretório Excelso não condenou nenhum político. No STF de hoje, alguns ministros fazem prejulgamentos e legislam. Em desrespeito à harmonia entre os poderes, o presidente da Corte, Gilmar Mendes, chamou o chefe supremo da nação às falas, exigiu demissões de servidores do Executivo, além de reclamar haver sido vítima de grampo telefônico, nunca comprovado.

O Tribunal Superior Eleitoral, composto de ministros do Supremo, cassou o governador do Maranhão, Jackson Lago, e “elegeu” no lugar dos cidadãos maranhenses Roseana Sarney, perdedora do pleito. Fora isso, o STF já teve como presidente um Nelson Jobim, que confessou, em livro e quando deputado federal, ter traído a confiança dos pares constituintes e inserido sem aprovação artigos da sua lavra na nova Constituição. Jobim declarou ainda que, na Corte, liderava a “bancada” do governo FHC.

A saudosa dupla baiana supracitada se escandalizaria com a liminar do ministro plantonista, Gilmar Mendes, a cassar a decisão de um juiz de primeira instância, impositiva da prisão preventiva ao banqueiro Daniel Dantas. Ao conceder liminar em habeas corpus, Mendes desobedeceu comezinhas regras processuais e fez tábula rasa da Súmula 691 do próprio STF. Como o destino vive a pregar peças, sem excluir os de vestes talares, no fim de agosto o médico Roger Abdelmassih, acusado de 56 estupros e sem nenhuma acusação de corrupção como Dantas, não teve igual tratamento procedimental. A ministra Ellen Gracie aplicou a súmula desprezada por Mendes e que impede o pular instâncias, antes de se julgar o mérito do habeas corpus.

A ministra Gracie, de se lembrar, foi autora de teratológica decisão a vedar a realização de perícia oficial em discos rígidos do Banco Opportunity, de Dantas. Ou melhor, ela proibiu a verificação da materialidade de graves crimes imputados. A decisão foi semelhante à que impede, diante de um inquérito policial a apurar homicídio, o exame em um cadáver crivado de balas.

Ellen Gracie, recentemente, e para usar do simbolismo contido numa expressão da sabedoria popular lusitana, quis passar de cavalo a burro. Acabou reprovada por falta de conhecimentos exigíveis no exame de ingresso na Organização Mundial do Comércio (OMC), embora tivesse contado com todo o apoio do governo Lula. Como não logrou o intento, a ministra resolveu dar mais um tempo no desprezado STF, onde chegou pelas mãos de Jobim. Não fora escolhida por FHC para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), inferior ao STF. Mas, com o apoio de Jobim, cresceu o seu merecimento e FHC a escolheu para o STF.

Mangabeira cansou de divulgar uma velha lição: não se pede por uma cadeira no STF, mas, caso haja convite, não se pode declinar da maior honraria e conquista pessoal conferida a um cidadão brasileiro. Do além-túmulo, talvez Rui Barbosa esteja a confortar Mangabeira com a frase latina o tempora, o mores.

Lógico, sem deixar de apontar o pioneirismo de Francisco Rezek, que saiu do STF para ser ministro-chanceler de Fernando Collor. Ao se dar mal nas funções, exigiu a volta ao STF. Voltou, mas logo depois fez de novo o STF de trampolim. E pulou para a Corte de Haia (Holanda), que permitia residência em Paris.

No recente julgamento sobre o caso Antonio Palocci era mesmo discutível o recebimento da denúncia contra ele, que goza de foro privilegiado por prerrogativa da sua função de deputado federal. Em post que publiquei dois dias antes do julgamento, inclinei-me pela mera suposição de crime e não pela presença de indícios com lastro de suficiência com referência a Palocci. Tudo, entretanto, com a certeza de que nem sempre a verdade real coincide com a verdade contida nos autos processuais.

O que impressionou na sessão do STF foi, porém, a suspeita de “prato feito” preparado por Mendes. Mais uma vez, ele contrariou a pacífica jurisprudência do STF e induvidoso texto legal. Como a denúncia foi rejeitada com relação a Palocci, findara a competência do STF referente aos codenunciados Jorge Mattoso e Marcelo Netto. Assim, os autos deveriam ser encaminhados à primeira instância, para exame do recebimento da denúncia em relação aos dois últimos.

Mendes, com apoio em Ellen Gracie, decidiu apreciar o recebimento da denúncia com relação a eles e apesar da perda do privilégio de foro. Gracie disse que havia um imbricamento, aliás, como em todos os casos em que se acusa um mandante (Palocci) e os executores de ordens (Mattoso e Netto). Só que, antes, o STF seguia a lei e não apreciava recebimentos de denúncia sem competência, como destacou o ministro Cezar Peluso.

Não bastasse, Mendes deu uma interpretação nova da lei sobre suspensão processual. Achou que a proposta de transação, no caso de Mattoso, carecia ser apresentada depois do recebimento da denúncia. Ante a rejeição das acusações contra Palocci e Netto, agora cabe a Mattoso, que confessou ter mandado acessar a conta corrente do jardineiro e isentou Palocci, optar pela transação na primeira instância. Caso seja esta a escolha, pela lei, a transação não implica confissão ou reconhecimento de culpa. E não conta como antecedentes criminais.

Por último, só falta o caseiro Francenildo dos Santos Costa perder a ação indenizatória contra a Caixa Econômica Federal. Rui Barbosa e João Mangabeira não suportariam tal golpe. Seguramente morrerão de novo, nas bibliotecas.

REVISTA CARTA CAPITAL - Wálter Fanganiello Maierovitch