Em 'Raça e História', ele se antecipou afirmando [br]não haver correlação científica entre raça e intelecto
Conselheiro Ayres, famoso personagem de Machado de Assis, certa vez afirmou que "as coisas só são previsíveis quando já aconteceram". No entanto, quando se trata da obra de Claude Lévi-Strauss, tudo indica que nosso conselheiro andava enganado.
O etnólogo é hoje conhecido em função da influência que seu modelo estruturalista alcançou em domínios como o parentesco, a mitologia e as classificações simbólicas. Mas a importância desse pensador não se restringe aos estudos acadêmicos. Ele escreveu textos dirigidos a um público mais amplo, e entre eles destaca-se uma pequena obra de 1952 - Raça e História - que prova como tamanho não é documento. A história desse manifesto merece atenção, entre outros motivos, pelo tom premonitório que apresenta. Lévi-Strauss foi signatário de declaração em repúdio ao racismo e a partir desse documento a Unesco encampou ampla pesquisa sobre o tema. Com o final da guerra e a abertura dos campos era preciso produzir uma resposta direta diante do cenário que então se desenhava.
Não era a primeira vez que antropólogos eram chamados a se manifestar diante de problemas públicos. Franz Boas, renomado etnólogo culturalista, já havia liderado manifesto contra o racismo. A diferença é que, se Boas se limitara ao contexto norte-americano, Lévi-Strauss tinha diante de si panorama mais amplo: a descolonização do pós-guerra.
Mas no panfleto Lévi-Strauss não apenas lidaria com problemas de época; pelas bordas delineia toda uma agenda de trabalho a ser seguida por ele e por gerações de discípulos. O primeiro ponto de ataque consistia em rejeitar a dimensão biológica do conceito de raça, mostrando como não existe correlação entre tipos raciais e características intelectuais. O discurso é claro: "Quando procuramos caracterizar as raças biológicas mediante propriedades psicológicas, afastamo-nos das verdades científicas". Tratava-se de mostrar como as diferenças entre grupos humanos eram resultado de fatores culturais e históricos e nada tinham a ver com a natureza.
De reboque o etnólogo atacava o suposto de que a humanidade evolui em um só sentido: "Não existem povos crianças, todos são adultos, mesmo aqueles que não tiveram diário de infância". Não há sociedades isoladas, muito menos adormecidas. "A diversidade seria menos função do isolamento dos grupos que das relações entre eles." Era preciso enfrentar o tema da diversidade sem abandonar a bandeira da universalidade dos direitos, herdeira do modelo de Rousseau. Mas era preciso também "diferenciar sem hierarquizar"; entender que as sociedades são várias, mas nem por isso expostas a regime único de evolução. "Um machado de pedra não é inferior ao de ferro", provocaria ele. "O problema é que a pedra não é ferro."
Nada há de ingênuo nesse texto que confessava nossa incapacidade de entender outra sociedade, já que não existe suspensão absoluta de julgamentos. O fato é que o jovem Lévi-Strauss convertia-se num pensador humanista das ciências humanas. O tom otimista do ensaio destacava-se em meio a um momento de pessimismo generalizado, assim como evidenciava a urgência de novas pesquisas.
Em Raça e História encontram-se condensadas não só lições de humanidade como uma pauta de trabalhos. Aí está, e em pequenas doses, o modelo de antropologia que Strauss desenvolveria por mais de 50 anos; aquela que inaugura um verdadeiro diálogo com o pensamento primitivo e entre filosofias simétricas. Aí estava delineada, também, uma "ciência do observado", onde objeto e sujeito da representação estão em questão e embaralhados.
Desenha-se assim um inventário involuntário de grandes temas de nosso autor. Entendemos como culturas não são essências, mas antes, relações. Percebemos em que medida a humanidade anda sempre às voltas com a luta entre unificação e diversificação de culturas, ou como não existe apenas uma história, a nossa, mas antes modelos de historicidade. Lévi-Strauss ensina, sobretudo, quanto vale desconfiar de verdades assentadas. "Bárbaro é aquele que crê na barbárie", e nesse território somos todos uns visionários. Hora de voltar ao início do texto. Nem sempre nosso conselheiro tinha razão. Neste caso, as coisas pareciam previsíveis e mal começavam a acontecer.
Fonte: Estadão - Lilia Schwarcz*
*Professora titular do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay (Companhia das Letras)