O Globo - Em 1969, com 20 anos, em plena ditadura militar, saí de Aracaju escondendo o paradeiro até mesmo da família e fui, acredite, para a antiga União Soviética, onde vivi durante 15 meses com a identidade falsa de Ivan Nogueira. Lá, enviado pelo PCB, estudei o ABC do marxismo-leninismo na escola internacional do Komsomol, organização juvenil do PCUS. Eu era então, como se diz em Frei Paulo, um tabaréu nordestino, monoglota, esquelético, carregando esquistossomose na barriga e estava sendo apresentado na viagem ao adorável mundo novo do avião, do bife à milanesa e da neve — não necessariamente nesta ordem.
Passados 40 anos, semana passada, fui rever Moscou. Haja emoção. Consegui localizar o lugar onde funcionou a minha escola. Hoje, lá existe o Instituto da Juventude, uma instituição de ensino superior especializada em administração pública e gerenciamento de empresas. Ou seja, a escola, que no passado formava jovens quadros para o comunismo, agora forma quadros para o capitalismo. Mas o prédio onde nós morávamos, chamado de Corpus B, está lá intacto. O endereço é Rua Yunosti, 5/1. Em russo, Yunosti quer dizer juventude.
Do dia que andei de avião pela primeira vez para cá, a Rússia sepultou a ditadura comunista e implantou uma economia de mercado. Isto não é pouco. Mas, ainda assim, eu esperava reencontrar um país muito mais mudado. É verdade que não podemos esperar em anos muitas transformações num país que, em 17 séculos, construiu uma rica história e uma forte identidade cultural própria. Vista por um visitante de uma semana, acho que na Rússia a tradição tem falado mais alto.
O país, cujo despotismo tem uma longa história que vem da época dos czares, carrega até hoje um viés autoritário. Na semana em que estive lá, ocorreram várias denúncias, de setores independentes, de fraudes nas eleições locais, vencidas com folga pela coligação governista Rússia Unida - que lembra um pouco, pelo tamanho agigantado e pelas ideias insossas, a nossa Arena da época dos generais.
A Rússia de Vladimir Putin procura incensar o orgulho nacional e o projeto de potência autônoma - dois postulados fortes do período comunista que foram abalados pela acachapante derrota do Leste no confronto o com o Oeste. O país tem, naturalmente, saudade de algumas conquistas do antigo regime, como a corrida espacial, por exemplo.
Acho, um pouco por isso, que os russos ainda não chegaram a um consenso sobre como lidar com o passado mais recente. A prova desta indecisão é que o corpo de Lenin continua lá no mausoléu da Praça Vermelha com o apoio, segundo pesquisa do Centro Analítico Yury Levada, feita em 2005, de quase metade da população.
Além disso, nem todas as estátuas de Lenin e Marx foram retiradas das praças. Aliás, o careca russo e o barbudo alemão viraram objeto de consumo capitalista. Nos arredores da Praça Vermelha, atores fantasiados de Lenin, e até mesmo Stalin, ganham uns trocados em rublos para tirar fotos ao lado dos turistas. No calçadão da Rua Arbat, um ponto de gente bonita e divertida de Moscou, o comércio de suvenires exibe ao lado das matrioskas, as bonecas que se encaixam umas dentro das outras, objetos como camisas, cartazes e broches dos tempos do comunismo.
No mais, a parte central e histórica de Moscou continua preservada, imponente e grandiosa. O metrô, com suas lindas estações, é o mesmo da época soviética. De novo na cidade, os engarrafamentos provocados pela grande quantidade de carros — muitos dos quais, modelos caros e luxuosos de uma elite emergente que, como alguns novos ricos da Barra da Tijuca, no Rio, adora exibir sinais exteriores de riqueza. (Aliás, a falta de estacionamentos faz os carros ocuparem as calçadas, e o colunista pensar em abrir uma franquia em Moscou do MSC da R — Movimento dos Sem Calçada da Rússia).
Há ainda outros sinais de, como o freguês queira chamar, ocidentalização ou globalização. No Gun, um enorme shopping em frente à Praça Vermelha, estão fincadas lojas das principais grifes da Europa e dos EUA. Em uma delas, o colunista, até então aceitando resignadamente as mudanças, perdeu a paciência com a exibição na vitrine de ornamentos da festa Halloween. Como diria um russo: "Halloween é o rui."
* Artigo de Ancelmo Gois publicado na edição de papel do GLOBO de hoje