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Um homem chamado Peixe

7/3/2009

Um homem de 1m60m, pesando uns 50 quilos, meio curvo, descalço, pele curtida de sol e sal, as calças amarradas por um cordão, ele tem o nariz de águia, mas, na verdade, é um peixe - Zé Peixe, lendário prático do porto de Aracaju - SE que, aos 74 anos, ainda nada 11 quilômetros e, no meio de ondas gigantescas, conduz os barcos à saída da barra.

Convivendo com sua estátua, erguida a alguns quilômetros de sua casa, Zé Peixe ganhou muitas medalhas por salvar náufragos e navios e sua história correu o mundo, porque tinha o hábito de saltar 17 metros do alto dos navio  e voltar nadando para a praia.

Conhecendo a barra do rio Sergipe como a palma da mão, Zé do Peixe embarcava em grandes navios e era seguido por um rebocador com a missão de trazê-lo de volta, assim que vencesse os perigos da barra e colocasse a embarcação em rota segura. No momento do transbordo para o rebocador, Zé do Peixe saltava do alto do navio e voltava nadando.

Os capitães estrangeiros ficavam perplexos. Um russo achou que Zé Peixe estava tentando suicídio e acionou a tripulação para que o detivesse. Mesmo assim, ele saltou para as águas escuras do litoral de Sergipe. Seguiu a história do mundo nessas praias, trazendo e levando navios.

Quando criança testemunhou uma tragédia: o naufrágio do navio Aníbal Benévolo que vinha do Rio para Aracaju e foi bombardeado por alemães. Viu os corpos na praia, com as maletas de viagem, viu o saque de seus bens, o desespero das famílias e a cena pode ter marcado sua vida. Diante dele, ali naquela barra não haveria mais naufrágios.

Nascido e criado na avenida Ivo Porto, numa casa ao lado da capitania, Zé Peixe não se lembra quando aprendeu a nadar. Para ele, é como se tivesse nascido sabendo. Filho de um influente político sergipano, Nicanor Nunes, Zé fez de uma travessura seu primeiro barco. Ele levou um baú da familia e conseguiu adaptá-lo e se lançar ao mar.

Quando passou para uma canoa, sua desenvoltura no mar impressionava aos capitães e marujos. Um deles ao ver o menino navegar e nadar, encontrou o nome que o define Zé Peixe, a capacidade humana de viajar pelas águas e a líquida adequação às ondas do mar.

Aos 25 anos, já como prático, Zé Peixe fez o primeiro grande salvamento. Ele conduzia uma iole do Rio Grande do Norte para fora da barra e o barco virou.

Zé tinha levado sua irmã Rita, dez anos mais nova que ele. Os dois conseguiram trazer os tripulantes para a praia, apontando o caminho , sustentando-os quando pareciam se afogar. A partir desse dia, Rita também passou a ser chamada Rita Peixe.

Aos 64 anos, Rita hoje é mãe de seis filhos e só costuma mergulhar na piscina de sua casa. Mas lembra-se bem de como nadou no mar revolto, orientando o mais velho dos marujos potiguares a prosseguir para a praia.

Foi a primeira chegar. Pediu socorro por Zé Peixe que vinha trazendo todos os outros. Os escassos automóveis de Aracaju rumaram para a praia e acenderam seus faróis e Peixe, atraído por eles como uma mariposa, acabou chegando a praia. Todos salvos.

Esse ato de heroismo valeu a Zé Peixe uma medalha de ouro, comprada pelo povo do Rio Grande do Norte. A medalha foi roubada por um amigo, mas Zé Peixe parece não ter se importado muito com isto. É um homem despreendido e, além disso, sabe que, mesmo no mar, não se pode contar com todos a seu favor. As caravelas, uma bolha com um rastro azul, queimam seu corpo quase sempre, assim como os miquins, um peixe que incha quando se coça sua barriga, costumam espetar seus pés.

Todos os diplomas, medalhas e honrarias que Zé Peixe foi colhendo em sua vida estão num quarto fechado no casarão onde mora. Bolor, poeira cupins destroem rapidamente suas memórias e o impulso que se tem quando se vêem os papéis amarelados e dilacerados, é de levá-los para um lugar seguro e catalogá-los.

Isso seria perigoso pois roubaria de Zé Peixe uma tática singular de triunfar sobre a morte. Convivendo com papéis amarelados que enaltecem seus feitos, ele acompanha diariamente sua decomposição, vendo-os desaparecer antes dele. Zé Peixe consegue asssim sobreviver à memória dos seus feitos, subvertendo a ordem biográfica dos heróis.

O cotodiano de um homem chamado Peixe não se compara com quem vive na terra firme. Ele acorda e mergulha diante de sua casa. Não toma banho de água doce desde a II Guerra. Às vezes quer visitar a irmã , sai nadando e irrompe em sua praia. Para levar documentos, cartas, usa plástico e nada com com sua carga colada no corpo.

Praticamente não come. Alimenta-se de fruta e pão, toma café. Vive colado ao telefone, esperando que o chamem para um serviço no mar. Aposentado, faz free lancer com prático e o dinheiro que ganha dá para os netos e amigos que o procuram. O casarão da família, de onde ele jamais saiu, tem as paredes descascadas, alguns móveis estão cobertos com panos, o velho piano atacado por cupins. É como se deixasse a casa envelhecer com ele e estar pronta para a demolição com sua morte.

Ele se lembra do tempo em que os manguezais de Aracaju não tinham sido devastados pela especulação imobilária. Aliás, alguns grandes empreendimentos da cidade não teriam sido feitos, sobretudo os aterros, se consultassem Zé Peixe. Sua experiência nadando pelo litoral o fez conhecer detalhes que os próprios engenheiros e arquitetos ignoram. O movimento das areias por exemplo. Zé Peixe trabalha sempre sabendo para onde os ventos movem a areia, transformando um lugar calmo em perigoso e vice-versa.

Os navios já não chegam mais tão perto como chegaram. Foi construído um porto off-shore . Mas o desquilíbrio causado pelos aterros é visível e barreiras de pedra foram construídas para tentar atenuá-lo. Zé Peixe acompanha cada mudança e nenhuma talvez tenha sido mais direta quanto a descarga de esgoto nas águas que chegam perto de sua casa. Mesmo assim, continha mergulhando como se a pele escamosa e curtida criasse defesas inexpugnáveis.

Alguns sinais da idade mostram que nem o corpo de Zé Peixe escapou do processo que corrói sua casa, os papéis e consome os manguezais de sua infância. Um cabo mal lancado atingiu seu olho esquerdo e perdeu parte da visão. Seu pavor é o que o declarem incapaz para o trabalho. A médica que o atende confessa aos amigos que é o único cliente que pede ardentemente para minizimar seu problema e deixá-lo trabalhar. A maioria esmagadora vai numa direção simetricamente oposta.

Zé Peixe anda descalço e foi assim que o conheci, em 96, no aeroporto de Aracaju. Dizem que tinha medo de não o deixarem entrar por não trazer os sapatos. Na verdade, Zé Peixe tem sapatos e os leva no ombro para calçá-los numa única hipótese: a missa dominical. Católico, herdou essa crença da mãe, uma vez que o pai era ateu e a única concessão que fez no leito de morte foi admitir que se Deus existisse seria uma grande surpresa. Zé Peixe não dorme em cama. Ele prefere o chão e confessou à irmã que não quer relaxar muito o corpo pois podem precisar , de repente, e o alcançam com o sono leve. Os amigos acham que se parar de trabalhar, Zé Peixe morre, embora nem todos aprovem sua frugalidade radical.

Zé Peixe se casou uma vez, ficou viúvo ainda na metade da vida. Nunca mais namorou. No casarão onde vive, vive um irmão mais velho, doente e um empregado. E há os gatos que ele acaricia., quando volta do mar.

Desempregados às vezes batem a sua porta. Ele ajuda. Sabe que a vida é difícil e que mesmo os peixes são mais escassos.

Tanto quanto a devastação dos manguezais, preocupa a Zé do Peixe a disaparição dos navios. Para ele, os carros foram substituindo os barcos, novas rodovias iam encurtando seu tempo de trabalho e, de repente, quase todo barco que vê é de bandeira estrangeira. Zé Peixe fala inglês, trabalha também com os estrangeiros, mas gostaria de mais movimento.

O menino que fez de um baú seu primeiro barco e que conhecia a riqueza dos manguezais, resiste toda a manhã mergulhando em águas poluídas, esperando que um barco o chame. A escassez de barcos e manguezais é o cenário onde Zé Peixe espera sua morte Ele ensinou o neto Kiko a nadar e espera que continue a tradição. Mas sabe que os mares mudaram e não estão mais para peixe.

Fonte: Minha História