(*) José Lima Santana
Recebi uma carta, pelas mãos do motorista do micro ônibus que passa no Umbuzeiro, da linha Canindé / Aracaju, enviada pelo meu compadre Peixotinho. Como previ, parece mesmo que ele vai tomar gosto pelo ofício de escrever. Aliás, mal comparando, ele teve a quem puxar. O seu pai, o velho Totonho Peixotão, era o escrivão do povoado Umbuzeiro, ou seja, era quem redigia as cartas dos vizinhos para os filhos que tinham arribado para o “Sonpalo”, nos tempos danados do pau de arara (dos caminhões do tipo pau de arara, e não do pau de arara dos porões da repressão militar, nos tempos “brandos” da “Gloriosa de 64”). Puta, merda. Êpa! Desculpem-me pelo palavrão. Saiu sem querer, eu juro. Já o seu primo, Tico Bebelo, filho do irmão do seu pai, Astolfo Peixoto, escrevia versos para a queima anual do Judas. Como se vê, família de escritores. Vá-se lá.
Estou mandando o escrito do meu compadre para o Ronaldo, cuja família tem uma banda de papa hóstias e outra de crente, mas ele mesmo não é de nenhuma das duas bandas: é espírita, diz ele. E por falar nesse cabra, eu não disse que o outro Ronaldo, o Fenômeno, daria certo no Coringão, apesar das noitadas e tudo o mais? Sapecou um golaço de cabeça no time da “porcada” e outro, numa pegada de primeira, no “azulão do ABC”. Não jogou neste domingo (15) e o Timão não saiu do 0x0. Ah, por que o time da “urubuzada” carioca não negociou com o Fenômeno? Será por que o Kleber Leite (te esconjuro!) acha o Obina melhor do que o Fenômeno? É, pode ser... Mas, deixa para lá. Diz a imprensa que o time da Gávea não tem dinheiro nem para comprar velas para acender ao São Judas Tadeu. A coisa está para lá de feia. O Urubu está perdendo penas. Daqui a pouco não vai poder mais voar.
Mas eis o que interessa, ou seja, a carta do compadre:
“Meu compadre,
Ando agoniado com um assunto que vi na televisão. Aliás, por falar na TV, o senhor já notou que o povinho miúdo da roça, hoje em dia, tá mais sabido do que o povão graúdo da cidade? Pois tá, sim. Ora, veja: aqui na roça a gente fica por dentro das coisas que acontecem nos lugares grandes, porque a TV mostra tudinho, tin tin por tin tin. E a gente sabe, e como sabe, das coisas cá da roça. Já vocês, doutores da cidade grande, só sabem mesmo das coisas aí de vocês, e não sabem das coisas cá de nós. É, meu compadre, a coisa tá mudando. O povo pequeno ainda vai dar sova de retranca de janela no povo grande. Mas isso é só comparativo, bem entendido. Sem essa de violência. Violência não tá com nada, né não?
Mas, porém, contudo e todavia, o negócio é o seguinte: o senhor viu aquela barbaridade do bispo lá do Recife (dizem que é do Recife e Olinda), que excomungou uma ruma de gente, da mãe da garotinha aos médicos? Naquele dia, o “príncipe da Igreja” amanheceu com a cueca ao avesso. Só pode. Onde já se viu uma coisa dessas? Então a menina inocente, um anjo de Nosso Senhor, devia perder a vida? Porque pelo que eu vi, os médicos não davam como certo que a gravidez da bichinha prosperasse, ou que, se prosperasse, ela tivesse bom termo. Ela podia morrer, ela e os menininhos cuja semente o infeliz, o maldito do padrasto deixou dentro dela, numa atitude de canalha, de cabra mais criminoso do que Barrabás, o que foi livrado por Pilatos, no lugar do Filho de Deus, Nosso Pai. Ah, o bispo não excomungou o criminoso, o bandido, o estuprador. Disse que excomunhão para esse tipo de crime não está no livro das leis da Igreja. Meu compadre, será que esse bispo tá regulando, ou será que a sua cabeça tá como cabeça de galo atacado de morrinha, que não morre, mas fica zonzo pro resto da vida? Que Deus me perdoe, pois não gosto de me meter, de pegar teima ou briga com gente de saia: mulher, juiz e padre. Mas eu sou cristão, católico, temente a Deus e devoto do meu Santo Padim Ciço Romão Batista, do Juazeiro. E, claro, posso falar.
Por via das dúvidas, e na sua ausência (aliás, meu compadre, eu tentei falar com o senhor, mas o seu celular não dava sinal de vida, três dias seguidos, e se eu não conhecesse o seu tino era bem capaz de pensar que o senhor esqueceu de pagar a conta) consultei o filho de Bertino do Algodão, que o senhor conhece. Não sei se o senhor conhece o menino, o Dorivaldo. Este vai ser padre. Já tá quase se ordenando e andou por esses dias ajudando o Padre Aniceto a dizer missa por estas bandas. Ele ficou dois dias na casa da tia, aqui no Umbuzeiro, que é a viúva do finado Zacarias Rabo de Galo, que Deus o tenha na sua santa paz, sem rabo e sem galo, pois sim.
Como disse, consultei o futuro vigário e ele me disse que um cristão católico pode falar, até reclamar, com o bispo sobre coisas que ele ache que deve falar. Disse o Dorivaldo que tem um artigo, uma passagem, ou sei lá o quê num documento da Igreja (parece que é um tal de Vaticano II) que autoriza o católico a falar, com cuidado, etc. e tal. O problema é o etc. e tal. Mas, de qualquer forma, eu falo. É direito meu. Se não posso falar com o bispo, diretamente, falo com o senhor que tem entendimento e vai me compreender.
O bispo tá mais do que errado, compadre. Ele não leu direito as Sagradas Escrituras. Não leu a passagem de Maria Madalena. Ele não sabe nada sobre atirar ou não a primeira pedra. Ele atirou um monte de pedras em quem não devia levar nenhuma. Ele não leu que Jesus disse pra gente não julgar pra não ser julgado. Ele não leu o apóstolo Paulo, falando aos coríntios (tive que consultar a Bíblia pra ver se é assim que se escreve), quando disse que “o amor é benigno, e que tudo perdoa”. Ele não leu o “amai-vos uns aos outros”. Ele não leu um bocado de coisa. E se leu, não compreendeu nada. Ora, compadre, eu que sou um quase tapado, perdido nestas brenhas da boca do sertão, sei dessas coisas todas, pois tive tino pra aprender no Livro Santo que o padre Miguel Monte, que Deus o tenha, me deu de presente, na minha crisma, faz um bocadinho de tempo. Aqui pra nós e depois pro mundo, não é que o padre Miguel gostava de dizer missa aqui no Umbuzeiro por causa das galinhas gordas da minha avó, que Deus também a tenha? Ainda bem, meu compadre, que o reino de Deus é imenso. Ele dizia, rindo, que barriga de padre é cemitério de galinha gorda.
Estou rezando muito pelo bispo do Recife. Ele tá precisado. Outros sujeitos da Igreja andaram dizendo que o bispo tava certo. Mas, agora, um bispo lá de Roma chamou o bispo do Recife na chincha, soltou-lhe um peteleco no cocoruto e disse que faltou humanidade. Mais ou menos assim. O senhor tá acompanhando tudo isso, né não? Ah, estou de peito lavado. Não é que eu fiquei uma arara com esse caso? A lei da Igreja condena com excomunhão quem realiza aborto, etc., naquela circunstância, com estupro e risco de morte. Mas a lei brasileira autoriza o aborto, mas só em casos que tais. O que vale mais, pra sociedade toda, que é de católicos e crentes, de espíritas e filhos de santo de terreiro de xangô, e até de ateus, a lei da Igreja ou a lei da Nação brasileira? Igreja é Igreja e Nação é Nação, como diz o filho do prefeito daqui, que tá estudando pra ser advogado e andou fazendo reuniões com o povo dos povoados, na campanha de reeleição do pai, no ano passado. Acho que esse tal cabrinha tem razão. Como se diz por aqui, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. E ponto final.
Excomunhão? Que coisa mais sem norte. O senhor lembra, compadre, daquela Santa Missão, de 1983, um ano de seca braba, que Frei Damião, já cansadinho pra danar, falando baixo demais, que a gente nem entendia direito, pregou aqui no sertão, com aquele alvoroço medonho de gente de tudo que era canto? Aquela que o senhor ficou de vir, mas acabou não podendo? Hum! Lembra do caso que eu lhe contei, do rapaz da Malhada Grande com a neta de Secundino da farinha? Pois bem. Só pra relembrar, na hora da elevação da hóstia consagrada os dois estavam no maior agarramento, uma pouca vergonha, quase na frente do frei. O padre daqui alertou o velho frei e ele interrompeu a celebração e sapecou uma bênção com a mão esquerda, em direção aos dois, como se fosse mesmo uma excomunhão ou coisa que o valha. O certo é que a mocinha até hoje não arranjou casamento e o cabra teve uma coisa lá nele que entortou a boca, torta que tá até este exato momento em que volto a lhe contar o sucedido. O povo ficou espantado. Dona Mariquinha de Zeca Tamborete fez uma porção de ladainha na capelinha daqui pra apagar os pecados daqueles dois. Frei Damião disse que nunca mais tornaria por aqui porque esta terra era terra de herege. Que tem alguns hereges, isso lá tem, mas não é todo mundo, né não? Na boca do sertão tem muito mais gente boa do que gente caim.
Depois de uns anos, outro frei andou por aqui e desbenzeu a benzedura de mão esquerda do frei Damião, que é outro que há muito se foi desta para melhor, e dizem os seus devotos que ele tá no céu, juntinho do meu Padim Ciço, coisa que eu não quero duvidar, mas... Disseram a este outro frei que a bênção de mão esquerda do frei Damião tinha sido pro povoado todo. E inventaram até que ele rezou, na ocasião, o credo de trás pra frente, o que é, dizem, um perigo. Eh, céuzão grande de Nosso Senhor! Valha-nos o sangue de Jesus Cristo, pois o sangue de Nosso Senhor tem poder!
Será, meu compadre, que aquele seu amigo não poderia publicar esta carta também, se não for nenhum incômodo pro senhor lhe pedir? É que o pessoal que estuda e mexe com o computador na escola leu as outras duas cartas, que o senhor mandou botar na internet (não é assim mesmo?). Uma chiqueza só. Todo mundo comentou. Houve até quem comentasse com ar zombeteiro. Inveja ainda mata um peste! Uma professora novata daqui até me convidou pra dizer umas palavras na escola. Eu vou tomar coragem pra ir. Veja lá, compadre. Se der, deu. Se não der, fedeu.
A sua comadre, que tá com uma constipação danada (gente velha é um caso sério), pede pro senhor aparecer. Tem umas quatro galinhas gordas no terreiro. Não quero dizer que o senhor também seja cemitério de penosa. Mas, em todo caso, apareça, sim.
A Belinha já começou a estudar, mas tá contrariada porque falta um professor numa matéria. Essa UFS não é do governo federal? Como pode deixar faltar professor? Será que não tem dinheiro pra pagar? E a gente paga tanto imposto, né não? A Belinha tá arranchada na casa da minha outra filha, no Aribé, mas telefona duas, três vezes por dia pra falar com a mãe. Não desapegou. Também tá cedo pra isso. E o tal celular é bicho bom, mas só pra quem tem dinheiro. Êta, mundão perdido, que só é bom mesmo pra quem tem. Pra quem tem milhão, e não vintém.
Um abraço, meu compadre. E que Deus, Nosso Pai, nos livre da excomunhão.
José Parente Peixoto, Peixotinho do Umbuzeiro”.
Nada mais a dizer. Claro.
(*) Advogado. Professor da UFS. Membro da Academia Sergipana de Letras e do IHGSE.