(*) José Lima Santana
Às vezes eu gosto de brincar, de rir, de levar momentos da vida na base do lúdico. Há mal nisso? Ora, claro que não. Afinal, as pessoas são muito ocupadas, muito sérias, sisudas, etc. Uma pitada de humor não faz mal a ninguém. Pelo contrário: rir faz bem à saúde. Lembro-me daquele meninozinho que Antoine de Saint-Exupéry encontrou, um dia, no deserto, e que ele chamou de “O pequeno príncipe”. O principezinho disse coisas sérias sobre as pessoas muito sérias. Coitadas.
Hoje, contudo, não tive um só momento de brincadeira. Não consegui dar as minhas boas risadas. Não. Abaixo está a razão disso: uma carta do meu compadre Peixotinho, sobre a qual eu não gostaria de emitir nenhum comentário. Ela fala por si mesma.
“Umbuzeiro, 20 de março de 2009.
Meu compadre,
O senhor sabe que eu num sou homem de abusar ninguém. Posso estar com o maior problemão do mundo, posso estar com a corda ou a faca afiada no pescoço, mas sou homem de aguentar tudo calado, de dar os meus jeitos, os meus pulos, até consertar as coisas, como conserto as cercas velhas do meu chãozinho de terra, de onde, nos tempos de fartura tiro de letra o sustento da minha família, que, como o senhor sabe, é de oito filhos, uns casados, outros debaixo das minhas telhas, dependentes de mim, mas, no fundo no fundo, todos, todos mesmos, ainda carentes do meu adjutório, pois hoje em dia está assim: muitos pais continuam ajudando os filhos mesmo depois que eles constituem família. Antigamente, era diferente: os filhos, adultos, ajudavam os pais. Mas Deus, Nosso Senhor, há de valer por nós, os pobres desta boca do sertão, onde eu me arrancho, e do sertão todo por aí a fora.
O negócio é o seguinte, para deixar de arrodeios: o senhor tem interesse de comprar umas cabras leiteiras que eu tenho? São cinco, de raça que o senhor bem conhece. Eu sei que criar cabras num é o seu ramo, mas o senhor, se num me levar a mal, poderia depois vender as bichinhas aí pelas bandas das Dores, porque aqui eu num tou achando comprador, a não ser Zé de Tibúrcio que quer me dar uma micharia, que num chega nem para pagar as peles. Minhas cabras são o meu encanto, o senhor sabe. Mas, compadre, eu num tenho vergonha de me abrir com o senhor: estou nas últimas.
O senhor tá sabendo que a coisa tá cada vez mais preta por aqui. Ontem foi dia de São José, mas a chuva num dá sinal de querer vir. Vez enquando o céu fica escuro, parecendo que São Pedro vai ter piedade de nós, mas o vento acaba espalhando tudo que é nuvem carregada. Mas, na maioria dos dias o céu tá um céuzão danado de verão. E o sol parece que chegou mais perto da Terra: árvores, bichos e gente tão tudo uma coisa só: tão tudo se acabando. Os pequenos, como eu, tão no desespero. Os bichos morrendo, a gente sofrendo e as autoridades mais uma vez fingindo que num tão vendo. Meu compadre: pelo amor que o senhor tem à sua afilhada Belinha, e eu sei que o senhor gosta dela por demais, me dê esse socorro. Num quero dinheiro emprestado, nem quero lhe empurrar mercadoria de pouca valia. Quero que o senhor compre minhas cabrinhas por um preço justo e que o senhor ainda vai ter lucrinho, aí nas Dores. Tentei vender pra um consórcio do bode, que tem na Glória, mas disseram que já tão com cabras demais. Perdi minha viagem.
O senhor lembra da última eleição? Não a do ano passado, de prefeito e vereador, mas a anterior, a dos grandolas? Pois bem: andaram dizendo que os grandolas de antes prometeram acabar com a seca, mas a seca continuou castigando os pequenos. Quando eu só falo nos pequenos é porque os grandes num sofrem, ou sofrem muito menos, pois eles têm de onde tirar, de um jeito ou de outro. E tem cada jeito deles tirar, né não? Disseram que iam fazer mudança, que iam mostrar como era que se governava para os pequenos, para os pobres. E cadê? Babau! Tudo igual, ou até pior. Nada, nada, meu compadre. Nem um rabo de cachorro gué sobra pros pobres. A politicada toda mais parece com cachorro de caçador de preá, que chega na macambira, sente o faro de lagartixa e desanda a latir como um desvalido, mentindo pro dono, que pensa que ali tá cheio de preá. Desde quando lagartixa é preá? Bem assim é a politicada toda, todinha. Cada um quer é se dar bem. O resto que se ferre, que se dane. E quem é o resto? Os pobres como eu e tantos e tantos.
O senhor viu o jornal da televisão mostrando a seca braba daqui? Pois é, o Brasil todo deve ter visto. Adianta? Nada, nadica de nada. Só faltou mostrar que aquela tristeza, aquela miséria toda era bem pertinho do riozão, do Velho Chico. Isso eles não mostraram. Também ficava feio demais, né não? O rio ali pertinho, na distância de um par de beiço, e os bichos morrendo sem ter água pra beber e sem ter um decomerzinho. O senhor viu aquele caboclo que deve ter cortado o coração de muita gente? O que falou que quando vê o bicho morrendo parece que é ele quem tá morrendo, pois ele vive é dos bichinhos dele? Aquele sujeito é meu parente, é da família da minha santa mãe, que dorme na glória do Pai.. Ainda ontem ele teve aqui em casa pra ver se eu tinha como emprestar algum trocado pra ele comprar um caminhão de água e uma mão cheia de ração pra tentar levantar os bichinhos dele que ainda resistem, sabe Deus como. Num tenho, não. Vou vender minhas cabrinhas leiteiras pra me socorrer, mas também pra socorrer meu parente, que tá ainda mais fraquinho do que eu. O que eu conseguir apurar será meu e dele. No dia que ele puder me pagar, ele me paga. Num quero juros nem nada. Aqui é assim: se um tem uma cuia de farinha, o vizinho ou o parente terá meia cuia. Mesmo na dificuldade, na miséria, a gente se ajuda. Ninguém morre só. E se a gente se ajuda, num morre ninguém, não.
Os Bancos só querem emprestar dinheiro por conta de “papagaios”, aqueles empréstimos que, como o senhor sabe, tem juros mais altos do que avião de carreira. E é pra matar o freguês! Ninguém aguenta, compadre. A palma, pra comprar, tá pela hora da morte. E os bichos bovinos tão se esvaindo, caindo aqui e acolá. Pra tentar salvar uma sementinha de gado que me resta, eu tenho que me desfazer das minhas cabrinhas, sustento da família, nestes tempos tão bicudos. O que mais posso fazer?
Meu compadre: o senhor que é um homem de entendimento, por que é que vão levar a água do rio pros confins do Ceará e num botam água aqui pra nós, tão pertinho, mas tão pertinho, que umas braçadas de cano chegam pra acabar com o sofrimento cá de nós? Tem gente morrendo de sede lá nas lonjuras? Bote água pra lá. Mas num é direito, num é justo deixar a gente aqui sofrendo, se acabando como um bando de criminosos, como um bando de almas penadas, que ficam vagando sem rumo pela imensidão. Mas, porém, contudo e, todavia, aqui num tem criminoso nem alma penada nenhuma. Aliás, alma deve ter mesmo é nos palácios dos grandolas: almas pesadas, isto sim. E quanto custa essa obrona da transposição (não é assim que se diz?) das águas do rio? Uma ruma de dinheiro da peste! Desculpe, compadre. Hum, sei não... Onde tem uma dinheirama dessas... Como a gente diz por aqui, “onde tem fumaça, tem fogo”. Só não sei qual o tamanho desse fogo, porque a gente só vê mesmo é a fumaça. Entra governo, sai governo e só a fumaça aparece.
Hoje cedinho, o prefeito passou aqui na minha porta, dizendo que a crise dos Estados Unidos tá acabando com o mundo todo e por isso a prefeitura e os governos num podem fazer nada. A culpa, diz ele, é do negão presidente, por quem eu, que num tinha nada a ver com o caso, torci na eleição dele, o Obama, que, pelo visto, tá escorregando no tomate, até agora. Mas ainda torço por ele. O mundo vai pipocar, mais ainda, diz o prefeito, que é metido a entender de tudo. Eu cá num sei dessas coisas, não. O que sei é que tão dizendo que num tem dinheiro pra socorrer o pobre criador de umas quatro cabecinhas de gado ou de umas cinco cabrinhas de leite, como eu e como tantos outros espalhados por este sertão de meu Deus. Mas será mesmo, compadre, que num tem nem uma raspa de tacho, ou melhor, de cofre, pra aliviar a dor da gente? Num é valor grande, não. É coisa de pouca monta, uma titica de nada. Qualquer adjutório resolve, por enquanto. Mas num é só isso que a gente tá precisando, não. Tem mais é que botar os cobres pra fora, pra aplicar direito o que é nosso, mas que muitos grandolas pensam que é deles. Por isso é que eles pintam e bordam. Entra ano, sai ano, entra governo, sai governo, e tudo fica como dantes no quartel de... de um sujeito aí que eu nem lembro do nome.
Os governos têm como aliviar a gente? Têm como diminuir o sofrimento do sertanejo na época das secas? Eu acho que sim. Num torram uma dinheirama com tanta coisa à toa, sem serventia pública? (Quem fala em serventia pública é o padre novato daqui, que tem um falatório danado de bom). Até na cueca daquele cabra lá foi parar uma ruma de dólares. Será que foi ele quem deu o desfalque nos bancos dos gringos? Pode ter sido. Ele sozinho fez aquela desgraceira toda, arranjou aquela dolarada toda? Como? Donde? Êta, Brasil perdido, meu Deus! Cadê os outros? E cadê o povo de tutano nos ossos pra fazer uma resistência da moléstia contra toda essa lambança que o país tá cansado de ver? O Brasil, meu compadre, parece uma barragem arrombada em tempos de cheia braba. À primeira vista parece que num tem conserto. Mas, pensando bem, tem, tem sim. A gente do sertão num resiste à seca, morre num morre? Se todo mundo se juntar, conserta o rombo da barragem. O que falta é isso mesmo: todo mundo se juntar e resistir. O que o povo num deve fazer é morrer de véspera como peru. Êpa! Morrer? Vade retro, pé de bode!
Por estes dias teve gente do governo cá por estas bandas. Mas tudo num passou de falatório. Ao menos, por enquanto. Dizem que tão estudando o que fazer pra gente conviver com a seca. Mas agora é que vêm com essa lorota? Por que num viram isso antes? Por que o governo num se precaveu antes pra num deixar os pequenos nessa situação desgraçada? A vida toda é assim. Entra governo, sai governo e o povo miúdo continua sangrando até o dia que os grandolas quiserem. Mas quando vai ser este dia? Será já vai ser agora, compadre?
Meu compadre, me permita um minutinho, fugindo um tiquinho do miolo desta carta: o senhor tá sabendo da morte daquele deputado meio complicado lá de São Paulo, né não? Deu na televisão que ele fez um projeto de lei pra todo homem, de quarentão em diante, ter que fazer um tal exame de toque. Se for o que eu tou pensando, o que já ouvi por aí, vai ser um reboliço das seiscentas. Imagine tudo que é homem velho levar dedo no reboque. Neguinho vai ficar com o retentor furado. Dia desses, andou lá pela nossa cidade uma enfermeira faladeira, da capital, visitando as colegas pra pedir voto pra eleição do sindicato lá delas, e ficou dizendo, lá pra um sujeito dos Araçás, que esse tal exame de toque é de muita valia pra saber se o cabra tem câncer (credincruz!) aí num lugar, etc. e tal. Eu tava no posto de saúde com sua comadre e ouvi o falatório dela. Imagine, compadre, o sujeito depois de velho ter que passar pelo dedo, ou, quem sabe, pelo dedão (vôte!), de um doutorzinho qualquer. Pode ser o dedo de quem quer que seja, né não? Coisa mais sem jeito. Já num bastam as dedadas que a gente tá levando, entra ano e sai ano? Só de pensar, esfria o espinhaço. Mas isso é assunto pra gente tratar depois. Desculpe por essa pequena andada fora do rumo da carta, por esse devaneio meio maluco. O problema é que quem tem o dito cujo, tem medo, né não?
Meu compadre: me ajude, se puder. Num tenho mais o que dizer, num tenho como lhe agradecer ou pagar. O senhor pode ser, se mal comparando, como a samaritana que deu de beber ao Filho de Deus, lá nos desertos da Terra Santa. Agora, eu e minha família tamos na fonte e temos sede. Num deixe, compadre, que venha a nos faltar um caneco de água ou uma cuia de farinha.
Desculpe por tudo, meu compadre. E que Deus nos livre e guarde de todos os males, sobretudo dessa cambada de grandolas, daqui, dali e de acolá, que tanto promete e cada vez mais nos enrola, pois é tudo da mesma curriola, calça o mesmo sapato e nos cozinha na mesma caçarola. Ora, bolas! Assim, vou acabar poeta, né não?
José Parente Peixoto, Peixotinho do Umbuzeiro”.
P. S. Mande a resposta pelo portador. E se der certo, o preço o senhor mesmo faz, pois já conhece minhas cabrinhas. Faça o que for bom pra mim e pro senhor, pois nenhum de nós, graças ao bom Deus, é ferida braba pra comer sozinho. Mas tem muita gente por aí que é, né não?
(*) Advogado. Professor da UFS. Membro da Academia Sergipana de Letras e do IHGSE.