Em Inimigos Públicos, o diretor Michael Mann dá ao bandido e herói popular John Dillinger a aura intensa de Johnny Depp para reimaginar, em todos os aspectos, o que um filme de gângster deve significar hoje.
É 1934. Há três anos já os americanos padecem sob os efeitos da fase mais profunda da Depressão, e o crime viceja. Essa é a era dos "desesperados" como Baby Face Nelson, Pretty Boy Floyd, Ma Barker, e Clyde Barrow e sua namorada, Bonnie Parker – jovens vindos de famílias pobres ou, no melhor, remediadas que já tiveram encontros com a polícia por causa de contravenções e que, em tempos normais, teriam seguido como pequenos marginais ou então voltado a trabalhar na fazenda ou na loja de ferragens de seus pais. Mas, nesses tempos em que tudo parece virado de cabeça para baixo – e em que, de qualquer jeito, a fazenda e a loja foram tomadas pelos bancos –, eles pegaram um desvio. Reúnem-se em bandos transitórios e, munidos de metralhadoras Thompson, as "Tommy guns", cometem assaltos ousados, à luz do dia, que não raro deixam mortos. Não é de surpreender que o governo os declare inimigos públicos. Exceto pelo fato de que o público, na maioria, os acolhe a ponto de dar-lhes guarida. Contribui para isso a maneira como a imprensa romantiza esses personagens; mas o fator decisivo, para as pessoas comuns, é que a seus olhos os "desesperados" estão roubando de quem roubou delas. São inimigos do governo e dos bancos – mas não delas. Tanto maior a necessidade, portanto, de o governo reafirmar sua autoridade capturando tais criminosos. E tanto maior o efeito obtido se o alvo da captura for o mais eficiente, audaz e insolente deles, o número 1 da lista de procurados: John Dillinger, cuja trajetória breve e intensa o diretor Michael Mann recria no não exatamente breve, mas muito intenso e frequentemente brilhante Inimigos Públicos (Public Enemies, Estados Unidos, 2009), que estreia nesta sexta-feira no país.
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Desde a sequência de abertura, este é um filme especial. Dillinger (Johnny Depp) é levado por um xerife até o portão de um presídio em que os construtores ainda trabalham, e cujas linhas vastas o céu azul e a planície à volta ressaltam; esses tempos estranhos estão mudando a própria paisagem da América. O xerife, na verdade, é um comparsa. Juntos, ele e Dillinger libertarão os amigos presos. Parte do plano não transcorre como deveria e um dos criminosos é alvejado. Na fuga em alta velocidade, Dillinger segura a mão do homem ferido, arrastando-o do lado de fora do carro e olhando em seus olhos, até que ele expire. Assim que ele morre e é largado, Dillinger faz uma rápida consulta aos ocupantes do carro e fuzila o companheiro que desencaminhou o plano. Códigos claros ditam a conduta desses homens. E serão eles o aspecto prevalente da trama (cujos primeiros tratamentos couberam ao romancista irlandês Ronan Bennett, que na juventude foi preso por um roubo a banco organizado por terroristas do IRA): das cenas magistrais de assalto e perseguição aos momentos mais ternos entre Dillinger e sua namorada, Billie Frechette (Marion Cotillard), Inimigos Públicos revolve em torno de decisões sobre o que é ou não permissível. Roubar de cidadãos não é, porque a imagem heroica de Dillinger é o que garante sua sobrevivência; mexer com Billie é vetado, porque o criminoso prometeu a ela segurança; e errar é inaceitável, porque a vaidade profissional de Dillinger não o admite.
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Mann, um dos mais vigorosos cineastas americanos, tem uma carreira que, do seriado Miami Vice, do qual foi produtor, a filmes como Fogo Contra Fogo, O Informante e Colateral, é marcada pela preocupação com a ética do trabalho – seja qual for ele. Em Inimigos Públicos, não apenas a vida de crime de Dillinger o interessa: fascina-o na mesma medida o conflito de Melvin Purvis (Christian Bale), o agente federal encarregado da perseguição a Dillinger. Um homem da lei honesto na essência, Purvis foi se repugnando com os métodos de seu chefe, J. Edgar Hoover (Billy Crudup), o sinistro diretor do FBI, cuja cruzada era menos contra o crime que em prol da ampliação ilimitada de seu poder. Hoover, enfim, não tinha códigos claros, e nesse sentido pode ser visto como um homem ainda mais perigoso que Dillinger. Purvis cumpriu o que Hoover queria, como ele queria, mas se arruinou no íntimo. Com sua economia característica, o diretor une esses elementos em algo que ultrapassa em muito o retrato de época (embora também esse seja extraordinário). Inimigos Públicos retorna à questão que está no âmago dos melhores filmes de gângster: o fato de que lei e moralidade nem sempre coincidem e, em momentos tumultuados como na Depressão, podem guardar entre si uma distância grave.
O primeiro clássico do gangsterismo, Inimigo Público, de 1931 – lançado portanto no calor da hora –, reconhecia a divergência entre o que é a lei e o que é justo, mas condenava o crime como instrumento de reparação. O marco da fase seguinte, Bonnie & Clyde, de 1967, é representativo do ideário do período: Clyde Barrow e Bonnie Parker, que na verdade eram ignorantes e violentos, são apresentados pelo diretor Arthur Penn, em seu filme inimitável, como mártires de um credo antiautoritário. Na década seguinte, O Poderoso Chefão e sua primeira sequência proporiam uma visão bem mais complexa. O crime, nas obras-primas de Francis Ford Coppola, é uma atividade econômica que, como as atividades legítimas, está entretecida na sociedade americana e responde por muito de seu ímpeto. Inimigos Públicos não se sobrepõe aos Chefões, mas como que dá um passo para trás para abrir o quadro e incluir nele um outro elemento: o do pragmatismo como traço intrínseco do caráter americano. Um pragmatismo tão acentuado que, em condições drásticas, pode evoluir para o radicalismo: se não há esperança, a lógica manda que se viva cada dia como se fosse o último, até que ele chegue de fato.
Michael Mann, que é um artífice de primeira grandeza, inventa aqui um código visual para ilustrar essa cisão moral. Rodando em vídeo digital de alta definição, formato com o qual obtém resultados inacreditáveis, ele contrapõe a dimensão arquitetônica dos Estados Unidos – grandiosa e ostentatória nas cidades, esparsa até os limites do horizonte fora delas – a closes imensos e ultradetalhados do rosto de seus atores (e Johnny Depp e Marion Cotillard, que sabem trabalhar em voltagem baixa, mas constante, tornam esses momentos infinitamente interessantes). Não há cena aqui, por mais explosiva, que culmine com excitação ou alívio; só com mais tensão e apreensão. Mann, é verdade, não resiste à faceta mítica do fora da lei – a alfaiataria impecável, o sorriso sedutor, o gosto pelo perigo. Mas a cultiva só na medida em que ela serve ao seu propósito, de reimaginar o que um filme de gângster deve dizer ao mundo de hoje. E que talvez possa ser resumido assim: ordem e desordem às vezes são inimigas em público – e quase impossíveis de distinguir em privado.
Fonte: Veja.com
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