A investigação da PF concluiu que a segurança em torno
do enem era "coisa de amador". Agora, o MEC toma medidas
para que a prova ocorra sem sobressaltos
Laura Diniz e Renata Betti
O vazamento do enem escancarou a fragilidade do esquema montado para garantir o sigilo da prova que, ainda neste ano, substituirá o vestibular em mais de 500 universidades brasileiras. Basicamente, todos os procedimentos de segurança, avaliados como "mambembes" até mesmo por funcionários do Ministério da Educação, sofrerão mudanças substanciais – desde a impressão do exame até o momento em que ele for aplicado aos 4,1 milhões de estudantes previstos, nos dias 5 e 6 de dezembro. Antes de tudo, o MEC tratou de cancelar o contrato com o Connasel, consórcio de três empresas privadas sem experiência em concursos da envergadura do atual exame, e entregou a logística da prova à Fundação Cesgranrio e ao Cespe, instituto ligado à UnB, que já trabalharam juntos na aplicação do próprio enem. O ministério concluiu tratar-se da única saída para preservar a aplicação do exame ainda em 2009. A investigação da Polícia Federal, que apontou na última terça-feira os cinco envolvidos no crime ocorrido na gráfica Plural, de São Paulo, não deixa dúvidas: "A segurança ali era coisa de amador", resume o delegado Marcelo Sabadin, à frente do caso. As brechas, que permitiram a três funcionários contratados pelo Connasel surrupiar as provas, foram abertas pelo próprio consórcio, escolhido pelo MEC por meio de uma licitação em que não havia outros concorrentes.
A apenas uma semana do enem, a Cetro, uma das empresas do consórcio, pediu à gráfica que reservasse uma área privativa para que seus funcionários pudessem manusear livremente os exames – algo fora do previsto, segundo VEJA apurou. O pedido de última hora deu-se por um motivo até razoável: a ideia era que, à medida que as provas fossem impressas, elas seriam organizadas em caixas nas quantidades exatas para atender à demanda de cada local de aplicação do enem em São Paulo. No plano inicial, essa operação aconteceria no Rio de Janeiro, num dos galpões da Funrio, outra empresa do consórcio. Não fazia muito sentido e, àquela altura, não seria sequer viável: a distribuição das provas estava atrasada. Ao tomar a decisão de manter parte dos exames na gráfica, o consórcio avisou que se responsabilizaria por 100% da segurança. Foi nessa área reservada que se juntaram aos quarenta seguranças já contratados pelo Connasel mais cinquenta funcionários, entre os quais o capoeirista Felipe Pradella, 32 anos, que, segundo a PF, encabeçou o crime. Não havia ali segurança nenhuma. Ninguém era sequer revistado ao entrar e sair da sala. Assim, não houve obstáculos para que, em 21 de setembro, o funcionário Felipe Ribeiro deixasse a gráfica com um dos cadernos da prova escondido na cueca. No dia seguinte, foi a vez de Pradella pegar o caderno que faltava e enrolar no casaco do colega Marcelo Sena, que saiu à rua tranquilamente, com o agasalho debaixo do braço – tudo registrado pelas câmeras. "Aquilo era uma festa", definiu Pradella à PF.
No pacote das mudanças planejadas pelo MEC para evitar novos vazamentos, ficou decidido que a impressão do enem se dará agora em um tipo de gráfica conhecida no mercado como de "segurança máxima". São lugares especializados na impressão de talões de cheque, cartões de banco, notas fiscais – e de concursos do porte do enem. O principal diferencial dessas gráficas é que as rotativas ficam instaladas em uma espécie de sala-cofre, de onde o material já sai embalado e lacrado. Os comandos para a impressão são dados a distância, por meio de computadores. "É a situação ideal. Quanto menos gente precisar manusear a prova, menos risco ela terá de vazar", diz Carlos Alberto Serpa, presidente da Fundação Cesgranrio. Também já está definido que a distribuição ficará a cargo dos Correios, que têm larga experiência na logística de material sigiloso, como as urnas eletrônicas. Eles farão o transporte do exame desde a gráfica até suas agências, onde o Exército e a Polícia Federal se prontificaram a vigiar os pacotes. Em alguns casos, as provas chegarão apenas no dia do enem, já no local em que serão aplicadas. São mudanças cruciais. O material estava sendo entregue na própria casa dos coordenadores do enem nos municípios – e com uma antecedência considerada absurda por especialistas: até uma semana antes do dia da prova. "Melhor isso do que deixar os pacotes à deriva numa escola", explicou uma das responsáveis no Connasel pela logística do exame. Isso só vem a reforçar a ideia de que havia muito improviso em torno do enem.
Nenhuma das três empresas do consórcio tinha experiência prévia alguma com concursos envolvendo logística tão complicada. São milhões de provas que precisam chegar a 1?829 cidades brasileiras e 10?000 endereços, números jamais vistos num vestibular. Para se ter uma ideia, a Consultec, empresa baiana que liderava o consórcio, nunca havia operacionalizado um vestibular com mais de 45?000 estudantes – ou 1% dos candidatos do enem. Fundada em 1991 por duas professoras universitárias, no ano passado a empresa viveu dois dissabores num intervalo de apenas doze dias. Primeiro, precisou invalidar um concurso para residentes médicos porque os candidatos identificaram na prova questões idênticas às de um exame aplicado, em 2007, pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Logo depois, o vestibular da Universidade do Estado da Bahia, também nas mãos da Consultec, foi cancelado porque a prova havia vazado. Novo concurso se realizou dois meses mais tarde. No caso do enem, a empresa baiana foi dispensada – só que, junto com as outras duas do consórcio, já havia recebido do MEC 38 milhões de reais dos 117 milhões previstos. O ministério tentará na Justiça reaver esse dinheiro. Na semana passada, o Tribunal de Contas da União iniciou uma investigação sobre o caso para saber se o MEC se cercou de garantias contra eventuais falhas na execução contratual. O próprio ministério fará uma sindicância interna para apurar por que não houve a devida vigilância sobre o consórcio, algo que o contrato previa.
Todos os envolvidos no crime foram indiciados por quebra de sigilo – inclusive o publicitário Luciano Rodrigues, dono de uma pizzaria em São Paulo, e o DJ Gregory Camillo, que intermediaram a tentativa de venda da prova para jornais e talvez até para um cursinho pré-vestibular na capital paulista, denúncia que a PF investiga. Os três funcionários contratados pelo consórcio foram enquadrados ainda por peculato e Pradella, o cabeça do grupo, também por extorsão. Na última sexta-feira, o presidente Lula sugeriu que o furto da prova teria como propósito denegrir a imagem do governo – hipótese já descartada pela PF. O crime cometido por eles não apenas atrapalhou a vida de 4,1 milhões de estudantes como obrigou dezesseis universidades públicas que adotarão o enem como parte de seus processos seletivos a mudar a data de seus concursos. Com a divulgação dos resultados do exame marcada para 5 de fevereiro, será necessário também adiar o início do ano letivo. Diante da confusão, algumas faculdades já desistiram de aplicar a prova do MEC neste ano. É o caso da USP e da Unicamp, donas dos dois maiores vestibulares do país. É uma pena. Espera-se que, daqui para a frente, o aparato de segurança em torno do enem esteja à altura da relevância da prova.
Fonte: Revista Veja