Os problemas em cadeia gerados pelo vazamento da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (enem), frustrando estudantes e desorganizando os vestibulares das universidades, são mais uma amostra do que pode ocorrer quando os interesses eleiçoeiros são postos à frente da racionalidade administrativa nos órgãos técnicos do Estado. Os efeitos foram tão avassaladores que podem desmoralizar a própria prova, que há mais de dez anos vinha sendo uma das principais ferramentas do Ministério da Educação (MEC) para tentar melhorar a qualidade do ensino brasileiro.
Aplicado pela primeira vez em 1998, o enem, em suas primeiras versões, limitava-se a divulgar as notas individuais dos estudantes que a ele se submetiam espontaneamente. Hoje, graças à experiência acumulada e ao respeito que conquistou entre os estudantes, a prova permite avaliar o desempenho das escolas públicas e privadas, dando às autoridades educacionais condições de identificar as diferenças entre elas e tomar as medidas necessárias para reduzi-las. A avaliação também permite a elaboração de um ranking de qualidade, o que orienta os pais na escolha dos colégios. Em primeiro lugar, o enem vinha sendo um indutor de mudanças qualitativas não apenas do ensino médio, mas também do ensino superior. Foi o sucesso desse mecanismo de avaliação que estimulou muitas universidades a reformularem inteiramente seu processo seletivo e assegurou aos estudantes uma alternativa aos anacrônicos "cursinhos preparatórios".
Resultante do açodamento com que o ministro Fernando Haddad tentou introduzir mudanças no enem de 2009, para utilizá-las como bandeira política na campanha eleitoral de 2010, o vazamento da prova praticamente anulou o planejamento das universidades para o próximo ano. Instituições de ponta, como a USP e a Unicamp, desistiram de levar em conta os resultados da prova. O mesmo ocorreu com importantes universidades confessionais, como o Mackenzie e as PUCs de São Paulo e Campinas. As universidades federais que aceitaram a proposta do MEC de converter a prova em vestibular unificado foram obrigadas a reformular o calendário escolar. Por seu lado, as universidades privadas reclamam dos prejuízos financeiros e acadêmicos.
As inscrições para o ProUni, umas das poucas iniciativas bem-sucedidas do governo Lula no campo educacional, também terão de ser adiadas. Para tentar evitar atrasos no início do próximo semestre letivo, a Secretaria de Ensino Superior (Sesu) terá de adotar uma gambiarra nesse programa, aceitando a pré-matrícula dos bolsistas e deixando para depois a fase de comprovação de informações referentes à renda familiar e ao histórico escolar dos candidatos a bolsas de estudos. E, obrigado a devolver a taxa de inscrição de R$ 35 aos alunos de escolas privadas que desistirem de fazer o enem, por causa do adiamento das provas para os dias 5 e 6 de dezembro, o MEC está montando às pressas um esquema de reembolso para o qual não tem qualquer expertise. Os alunos terão de enviar uma carta para o Inep, o órgão responsável pela prova, mas a data e a forma de devolução do dinheiro até agora não foram definidas.
Para custear todos esses gastos não previstos o MEC será obrigado a desviar recursos de suas atividades-fim. Mais uma vez, infelizmente, prevalece o velho vício da administração pública brasileira, em cujo âmbito as verbas orçamentárias acabam ficando no meio do caminho, jamais chegando integralmente aos seus destinatários finais para a execução de políticas públicas eficientes. Somente o custo da impressão da nova prova consumirá cerca de R$ 33 milhões dos R$ 110 milhões de que o MEC dispunha para aplicar o enem a 4,1 milhões de estudantes em 1,8 mil cidades este ano. Além disso, há ainda que se contabilizar os gastos com o aluguel dos locais para a prova ? e assessores de Haddad já reconheceram que eles podem ser muito superiores aos custos de contratação de uma nova gráfica.
Evidentemente, a bagunça em que se converteu o enem de 2009 afetou a credibilidade da prova, o que é reconhecido até dentro do próprio governo. Ela poderá ser recuperada a médio e longo prazos, é certo. Mas, para que isso ocorra, é preciso que a racionalidade administrativa, e não o interesse eleitoral, volte a prevalecer no MEC.
O Estado de São Paulo