O crack é a nossa mais preocupante epidemia. E é uma droga apocalíptica que desencadeia uma série de patologias que criam agudas necroses sociais, inclusive, a mais aguda delas, é a desintegração completa e irreversível das famílias, chegando ao cúmulo de pai matar filho, filho matar mãe, neto matar avô... do jeito que tá na Bíblia.
Há em alguns estados, como em Sergipe e em São Paulo, governos anunciando uma frente para eliminar o crack.
Quero ver quem será o craque que vai fazer tão idiossincrática firula. Vão tirar o crack e trocá-lo pelo quê?
Os caras continuam com a velha e batida lógica de agir contra o efeito e nunca contra causa.
Enquanto os filhos se divertem no shopping, vão ao cinema, se banham na piscina do condomínio e comem na praça de alimentação, os doutores, entre uma dose e outra de scotch, discutem como afastar as drogas das periferias. Mas nunca pensam em como afastar as periferias das drogas. Veja você.
O que ninguém imagina é que os filhos dos que não podem ir ao shopping e patinar numa pista de gelo, que não tem montanha russa e bungee jumping pra descarregar adrenalina - que tem apenas uma poça de lama ou de esgoto a céu aberto como piscina, usam o crack como um lenitivo.
O que os tomadores de scotch não podem esquecer é que até mesmo eles que tem acesso a cargos públicos, e das benesses que vem junto, precisam se drogar com suas doses de scotch ao final do expediente.
O estado se faz presente nas periferias edificando hospitais e delegacias. O diabo é que a maioria das enfermidades são conseqüências dos esgotos a céu aberto, da poeira, da falta de asfalto, da lama, do lixo amontoado de qualquer jeito, da falta de higiene; em uma palavra, da falta de políticas públicas de saúde preventiva. Mas é mais fácil construir um hospital.
Os presos são, na sua esmagadora maioria, gente sem estudo, sem emprego, sem pai ou sem a mãe, sem esperança no futuro, sem apoio de ninguém e sem acesso à droga da felicidade. Mas, é mais fácil construir presídios do que construir políticas culturais, de esporte e lazer.
Os doutores tomadores de scotch se esquecem que quando um jovem senta num beco imundo e traga um cigarro de crack ele, por alguns segundos, passeia em um lindo Shopping Center, desliza na neve, mergulha em uma montanha russa e mata a fome de tudo o que lhe falta. Ali, no beco fétido, o jovem sem amor, sem profissão e sem emprego, sem dente e sem esperança, mitiga a sua dor. E como ele não tem emprego e nem dinheiro para saciar sua diversão, a sociedade é que paga a conta.
Lelê Teles é formado pela Universidade de Brasília. É publicitário, escritor e roteirista. A biblioteca que fica no ponto de ônibus da 514 norte recebe o seu nome. É casado com a jornalista peruana Lena Mitidieri e pai de Giulita. Escreve sobre análise do discurso.
Fonte: Blog do Noblat