(*) José Lima Santana
- “E as outras semanas num são santas, seu Raimundo?”. Isto era o que indagava Lenço Branco, ajudante do meu pai, na matança semanal de bois para o preparo da carne de sol, que é uma preciosidade em minha terra de berço. Lenço Branco, hoje avô, em São Paulo, não se conformava com apenas uma semana dita santa. Enquanto os cedrenses (ou cedreiros, como alguns gostam de se intitular) dizem que a carne de sol deles é a melhor de Sergipe, os dorenses, bem mais modestos, dizem que a carne de sol de Dores é, apenas, a melhor do mundo. A diferença é quase nada entre Sergipe e o mundo. Uma “tuliça”, como diria tia Joana, tia da minha avó paterna, que se foi desta para a outra vida com bem mais de cem anos de idade. Sujeita danada. Quase não morre. Quase fica para semente.
Vamos entrar na Semana Santa, fim da quaresma, tempo de penitências, muito mais ontem do que hoje em dia. Semana Santa, como é óbvio, tão cultuada pelos católicos, e, sobretudo, por aqueles devotos, que levam muito mais em conta a Paixão e Morte de Jesus do que a sua Ressurreição. A Ressurreição fica confinada a ovos de páscoa? Meu Deus! Ora, sem a Ressurreição, não haveria Cristianismo. A razão da fé cristã é exatamente a Ressurreição do Messias. Mas deixo o assunto para padres e bispos e, claro, pastores, principalmente os de lá e os de cá que pregam mais alto do que o canto dos galos em madrugadas festivas.
No último fim de semana estive com o meu compadre Peixotinho, lá no Umbuzeiro. Fui acertar a questão das cabras dele, que eu não precisei comprar, não. Fiz outro acerto com ele, que, contudo, não merece aqui ser registrado. É coisa de compadre para compadre de grande consideração, que, graças a Deus, nós somos. Perguntei ao compadre se ele tinha alguma coisa para contar sobre os tempos da quaresma, algum sucedido, alguma coisa que valesse a pena o Ronaldo colocar no site. Ele ficou de mandar alguma história assim que a cachola funcionasse, assim que ele tivesse lembrança de algo. Ontem, mandou-me uma cartinha pelas mãos de Tibertino Rabichola, consertador de arreios para animais de montaria, que me veio prestar uns servicinhos. Aliás, este Tibertino é um profissional da sola que, hoje, é bicho em extinção. Aí vai a carta:
“Compadre,
Se Deus, Nosso Senhor, puder fazer um homem mais feliz do que eu, o mundo desanda, porque eu sou o homem mais feliz e, muito mais do que isso, sou o mais grato de todos. O senhor sabe muito bem a razão. Como eu sei que o senhor não é chegado a fricotes, a disse daqui e disse dali, dou o assunto por encerrado antes mesmo de começar. Deus há de lhe pagar por tudo, porque só Ele é quem cuida da gente. Governos? Nada, nada, nada... Fazem que vão, mas não vão, fazem que fazem, mas não fazem... É tudo uma cambada só! Neles eu perdi a crença.
Ah, meu compadre, reli tudinho que o senhor trouxe naquelas páginas sobre os comentários das pessoas. Não é que eu tou ficando famoso quase igual ao senhor? Josivânia de Brasília, Severino e Sueli Guerra do Rio de Janeiro, Flávia de Aracaju... Tem até um tal de Zoinho. Donde ele é, o senhor sabe? Esse povo nem imagina o pobre de Cristo que eu sou, né não? Até um cabra chamado Aristeu disse alguma coisa também. “Seu” Ronaldo num conta, né não? Por falar nesse tal Aristeu, o senhor lembra do velho Aristeu das Embiras, sujeito apaideguado, metido a rezador, que andava de porta em porta, de cancela em cancela, oferecendo suas rezas pra curar de um tudo? Aquele que tem, ou tinha, um filho que carregou nas ancas da burra crioula do pai o filho de Tinoco Sucupira, numa noite de São João, pensando que era mulher. O senhor num deve lembrar, não. Pensou que era mulher, depois de dançarem a noite quase toda, no forrobodó de Ciço Vagalume, mas era só um sujeitinho que tinha virado “menina”. Também um sujeito que voltou de férias do Rio de Janeiro, vestido de mulher, cabelão loiro na cintura, com peito e tudo... Vôte, pinima! Te arrenego, fruta que num dá doce! Mas tem quem goste de tudo que é tipo de fruta, né não? Cada um cuida de si e assim lá vai. Pois bem. Aristeu das Embiras embarcou, dia desses, pra cidade de pé junto. Deixou um inventariozinho pro senhor resolver, umas terrinhas muito boas e um lote de casas de aluguel na cidade. Só tem uma complicação que são uns meninos de menor, filhos de quatro mulheres que ele deixou por aqui e por ali. Coisa de pequena monta que o senhor tira de letra, né não? Depois eu peço pra gente dele lhe procurar, viu? Ao todo, são dezoito filhos. Um batalhão!
Sobre alguma coisa da quaresma eu não tava lembrado de nada que tivesse valia de contar. Fiquei matutando, matutando, vai daqui e vai dacolá, e acabei tomando tino de um caso sucedido ali pras bandas da Lagoa da Mão da Onça. O senhor sabe que o povinho daquelas bandas é povinho de gente rezadeira, gente de ladainhas, velas e foguetório em noite de latomia de Igreja. Povinho que gosta de beijar mão de padre tá ali. Mas, contudo, porém e todavia, parece que aquela gente igrejeira tem mais fiança nas coisas do outro mundo do que nas coisas que a Igreja ensina. Esquisito, né não?
Ora veja. Lá pros idos de 1960 andejou pras bandas da Lagoa da Mão da Onça, das Embiras, dos Pilões, da Cajazeira, do Teto do Meio, da Armação e do Pau Torto um labisone. São sete freguesias que mula de padre e labisone festejam. Aquela mais sumida do que este. Dizem que é porque os padres modernos num são chegados a fazer filhos como antigamente. E quem vira mula de padre é padre que faz menino. Os de hoje são fraquinhos nesse terreno. Alguns bolem em meninos. Dizem. Há muito tempo num se ouvia falar num bicho capeta daqueles, correndo freguesias naquelas redondezas. Diziam os mais antigos que a última aparição tinha sido em 1951, ano em que Zé de Dona Zefinha Mão de Fada, bordadeira preferida das ricas da cidade, deu pra comer terra. Daí pra virar bicho, labisone, foi um pulo. Dizem. Eu cá num sei. Pois num é que nove anos depois outro maldito deu de correr trecho, assombrando um magote de gente? Foi, sim. O senhor lembra daquele sargento velho da Polícia, um agalegado, que comprou um pedaço de terra da viúva do finado Chico Lingüinha, sujeito que, em vida, num falava de ninguém nem mentia? Ele foi vizinho de terra do seu tio. O senhor deve se lembrar. O sargento, que era aposentado e viúvo, se enxeriu pro lado da mulher de Maneca Lagoano, e a dita cuja foi morar com ele, largando o marido e seis filhos, todos pequenos de cobrir com o cesto. Pois num é que o labisone deu uma carreira nela, quando ela tinha saído pra fazer coisa que ninguém podia fazer por ela, à noite, na latrina que ficava atrás da casa? E o sargento tava acordado, tanto que quando ela viu o labisone e gritou o velho deu mão do pau de cuspir marimbondo e saiu praguejando e atirando pra todo lado. Qual o quê? Só acertou o vento. E bala de revólver pega em labisone? Só se for bala de prata e, ainda assim, na mão de homem abençoado. Um sujeito que esbagaça uma família, tomando para si mulher alheia, nunca há de ser abençoado, né não?
Conversa vai, conversa vem, um conta uma coisa, outro conta outra, eis que chegou a notícia de que um sujeito, trabalhador da fazenda do Padre Antônio Cabral, vigário da Serra Negra, na Bahia, mas que tinha umas boas seis mil tarefas de terra no Pau Torto, andava dizendo que o labisone viu a calçola vermelha da mulher do sargento. Tou dizendo mulher pra num dizer rapariga. A sua afilhada Belinha diz que rapariga é termo desusado, que agora tudo é mulher, casada ou não. São os novos tempos. Vamos, porém, contudo e todavia, ao que interessa. O sargento recebeu a notícia no alpendre da casa. Bufou feito boi inteiro, afiando as pontas em barro de formigueiro. Jurou que pegava o cabra, fosse lá quem fosse, empregado ou não de padre. Aliás, ele dizia que de padre tinha nojo. Herege! Se o cabra andou falando nos panos de baixo da mulher do sargento, era ele o labisone, com certeza. E, com mais certeza, ela tinha calçola vermelha, sim. Verdade é que o sargento, que devia ter uns 60 e tantos anos, tomou o rumo da fazenda do padre, a fim de botar uma tocaia no vaqueiro falador. Contratou dois cabras no Ermírio e pra lá tocaram, uma tardezinha. Era uma quinta-feira da Semana Santa. Diziam os antigos que labisone fica mais ativo nos últimos dias da quaresma e que o encanto se quebra na meia noite da Paixão, pra só voltar na próxima quarta feira de cinzas. Será isto verdade, meu compadre? Parece que labisone é bicho em falta, né não? É como promessa de político.
Naquela noite a coisa fedeu. Quem me contou foi Severino de Sá Totonha, da Várzea Grande, pois o irmão dele, Belarmino de Sá Totonha, era um dos cabras do sargento. Para não alongar a conversa, tocaia feita num capão de mato perto do barraco onde o vaqueiro falador morava, a poucos metros da casa grande da fazenda, os três esperaram o sujeito sair pra se encantar. Ele saiu, alta noite já era. Desceu uma pequena ladeira que dava pruma grota perto do tanque. Os três, com cuidado, foram atrás. De repente, cadê o cabra? Nada, sumiu. Logo mais que logo, porém, contudo e todavia, ouviram um reboliço desgramado no meio da caatinga, vindo em direção deles. Um dos cabras teve uma tremedeira danada e mijou nas calças. Acabou-se o homem. O nome dele num lembro. O outro, Belarmino, e o sargento fizeram-se nas armas à espera do tinhoso. E ele veio. Era um bicho parecido com cachorro, mas muito maior, do tamanho de um jumento graúdo, fedendo a enxofre, que é o cheiro de satanás. Os dois atiraram. Belarmino levou um sopapo que caiu com uma perna quebrada. O rifle papo amarelo do sargento foi jogado longe e o labisone ficou cara a cara com ele. Belarmino, no chão, sem poder fazer nada, pois se pudesse, fazia, que corajoso tava mesmo ali, ainda gritou: - Sai daí, sargento, senão o labisone te come! Nem deu tempo. O bicho levantou a pata traseira esquerda e despejou uma baita mijada na cara do sargento, que ficou cego da gota serena, além de ter ficado aluado pro resto da vida. Depois da mijada o bicho sumiu, foi correr trecho. Naquela noite, muita gente disse que viu o labisone. Teria sido castigo pro sargento tomador de mulher alheia? Sabe-se lá...
Ah, meu compadre, já pensou se um labisone desses pudesse dar umas boas mijadas nos políticos que mentem pro povo, que enganam o povo? Quem me dera! Se eu pudesse, e isso fosse possível, eu trazia um labisone trancado num vão de casa à espera da politicalha fazedora de promessas e enganadora. Com certeza ia faltar mijo e sobrar poucos políticos, pois ainda tem algum que se salva, né não? Poucos, quase nada. E quando eu visse um desses políticos mijados pelo labisone, eu haveria de dizer: - Esse era o cara!
Desculpe-me, compadre, se hoje eu num tou com a cabeça boa pra escrivinhar.
Um abraço.
José Parente Peixoto, seu compadre Peixotinho do Umbuzeiro”.
Pois, sim. Meu compadre e seu lobisomem. Eu, hein? Antecipadamente, Feliz Páscoa para todos, cristãos ou não, pois nunca é demais desejar um naco de felicidade a todo mundo.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da Academia Sergipana de Letras e sócio efetivo do IHGSE.