...o psiquiatra Francisco Baptista Neto trouxe pessoalmente o material herdado do pai, Lourival Baptista, que cumpriu mandatos como senador e governador de Sergipe, entre outros, e hoje vive em Brasília...
Descobertos depois de mais de 50 anos guardados em empoeiradas caixas, 682 bilhetes escritos por Getúlio Vargas trazem à tona desconhecidos detalhes sobre os últimos anos de governo de um dos mais controversos políticos brasileiros. Produzido no conturbado período em que ocupou a Presidência da República pela segunda vez, o material mostra os despachos diários do estadista com seu chefe da Casa Civil, Lourival Fontes, até um mês antes de suicidar-se, em agosto de 1954. Por meio da passionalidade de suas palavras e de sua inconfundível caligrafia, ficam nítidas as preocupações cotidianas com temas cruciais da época, como a falta de alimentos nas prateleiras, os interesses envolvidos na exploração de petróleo, a necessidade de investimento em infraestrutura e os discursos dedicados aos trabalhadores.
Em encontro realizado no dia 2, no Rio, a socióloga Celina Vargas, neta do estadista, atestou a autenticidade dos documentos, ao lado dos pesquisadores José Augusto Ribeiro e Francisco Reynaldo Barros, especialistas em getulismo. Em pleno Museu da República, antigo Palácio do Catete e sede da Presidência até 1960, ela ficou visivelmente deslumbrada com a relíquia. Morador de Florianópolis, o psiquiatra Francisco Baptista Neto trouxe pessoalmente o material herdado do pai, Lourival Baptista, que cumpriu mandatos como senador e governador de Sergipe, entre outros, e hoje vive em Brasília.
Foi em 1967 que Lourival Fontes, também chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo, incumbiu seu amigo e xará da missão de resguardar o futuro da preciosidade. Como única ressalva: que só fosse desvelada passados 40 anos. "Como estavam encaixotados, só recentemente encontramos os bilhetes", conta Baptista Neto.
De acordo com as primeiras análises, os documentos não devem modificar versões e certezas a respeito do período e dos personagens retratados. Uma análise mais aprofundada será iniciada e reunida para publicação, a cargo do escritor Toninho Vaz. Mas já é possível constatar, com minúcia de detalhes, o método de trabalho de Getúlio, bem como suas prioridades de governo. De volta ao poder em 1951 por meio do voto direto, o estadista estava mais uma vez atento à exploração do petróleo, como mostra um de seus bilhetes: "O "Diário Oficial" está agora publicando decretos do governo passado. Ainda hoje publicou um novo regulamento do Conselho de Petróleo. É preciso falar ao ministro da Justiça que isso não me parece regular. Esses atos devem ser revistos". Segundo José Augusto Ribeiro, o estadista estaria procurando revogar iniciativas que teriam beneficiado as companhias estrangeiras, dois anos antes da criação da Petrobras.
Todo o vigor do então presidente também pode ser visto na constante cobrança por ações contra a alta de preços e a falta de alimentos de primeira necessidade, compromissos assumidos durante a campanha eleitoral. É perceptível, ainda, a leitura diária dos jornais da época, que servia não apenas para corrigir problemas como o desabastecimento, mas também para avaliar a disputa política travada com seus opositores. "Esse jornal não é mau, mas parece que está evoluindo para oposição. Será trabalho dos tubarões, que pretendem acabar com o controle de preços?", escreveu.
Também estão presentes rascunhos de alguns de seus polêmicos discursos, de cunho populista, nos quais procurava conquistar o apoio do proletariado, como mostram as palavras escolhidas para o feriado de 1º de Maio: "Nas horas de glória e de triunfo, como nas de sofrimento e perseguições, eles (os trabalhadores) foram sempre fiéis, leais, desinteressados e valorosos. E foi para servi-los que voltei ao poder. Já o disse uma vez e agora repito: os trabalhadores nunca me decepcionaram".
Mais à frente, ele indica que aproveitará a ocasião para dar uma boa notícia: "Falar depois no aumento do salário mínimo dos trabalhadores que não poderá ser de menos de 5%". Em um discurso de fim de ano, próximo ao Natal, o "pai dos pobres" volta a conclamar a classe: "Não há motivos para greves, nem perturbações. Eu preciso do apoio e da confiança dos trabalhadores e estes encontrarão em mim o amigo de sempre, pronto a ampará-los em suas justas reivindicações".
Apesar do rico material, Ribeiro ressalta que o acervo não reflete toda a atuação política do então presidente, já que muitos assuntos relevantes - entre eles a criação de órgãos como Eletrobrás, Banco do Nordeste e Petrobras - eram tratados com a assessoria econômica e não com a Casa Civil. Ainda assim, está registrada a opinião presidencial sobre algumas das principais deficiências do país na altura: "O problema fundamental que resume as dificuldades da hora presente é o transporte. As estradas de ferro precisam renovar seu aparelhamento, desgastado e obsoleto. Precisamos de navios novos para nossa Marinha Mercante, aparelhados de câmaras frigoríficas. (...) Tudo isso está sendo estudado, planejado e providenciado".
Em outros momentos, fica mais clara a verdadeira personalidade de Getúlio, nem sempre compreendida. Francisco Reynaldo Barros destaca que, para um presidente acusado de apreciar festividades, o bilhete a seguir aponta nova faceta: "O assunto do Espírito Santo não é questão de casaca ou smoking, é o próprio banquete. Lucro apenas livrar-me dele. Como de outros que me ameaçam".
Ao vir a público para divulgar os documentos, Baptista Neto anuncia que doará o material para uma instituição competente. Entre os principais postulantes estão Arquivo Nacional, FGV/CPDOC e Museu da República. Antes de concretizar a doação, no entanto, o psiquiatra viajará a Sergipe em busca de outras duas caixas perdidas. O material até agora encontrado foi escrito em 1951 e 1954. Faltam, portanto, dois anos de bilhetes, que compreenderiam todo o segundo governo Vargas. "Ainda resta uma esperança", diz Celina. De qualquer forma, ela já comemora o fato de poder agora exibir as provas que faltavam contra os detratores de seu avô. "Cai por terra, de uma vez por todas, a versão de que Getúlio estava incapaz e muito velho para conduzir o país", desabafa, com orgulho. "Tivemos um grande presidente."
VALOR - Por João Bernardo Caldeira, do Rio