Cerca de 30 quilômetros de uma estrada de terra muito ruim, cheia de atoleiros em dias de chuva, separam o povoado de Serra da Guia, onde vive a família de Maria José dos Santos, 47 anos, da sede do município de Poço Redondo, pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Sergipe (dados de 2000). Maria José está chegando da feira na cidade com alguns dos 13 filhos vivos, de 19 nascidos. Comprou dois quilos de carne, farinha e alguns outros mantimentos, usando parte do único rendimento fixo da família, os R$ 167 mensais do Bolsa Família.
É a segunda vez em quatro anos que o Valor visita Maria José e sua família, cadastrada no principal programa de transferência de renda do Brasil como em situação de miséria extrema e, por isso, elegível para a maior faixa de concessão do benefício. Há quatro anos ela preparava-se para começar a receber R$ 95 mensais do programa. O benefício, hoje reajustado em 76%, reforçou a dieta magra da casa. Fora isso, pouco mudou no cotidiano de carência da família Santos.
Como há quatro anos, a reportagem percorreu vários municípios do Semiárido nordestino e procurou as mesmas famílias na tentativa de avaliar seus progressos na qualidade de vida desde 2005. Das três famílias novamente contactadas, a de Maria José foi a que mostrou menores sinais de mobilidade econômica. Em São José da Tapera (AL), a família de Joselma dos Santos deu alguns passos adiante, mas a única evolução segura na renda veio do programa do governo - de R$ 30 para R$ 122 mensais. Em Cícero Dantas (BA), Marlúcia Aureliana do Nascimento trilhou a velha rota da migração para o Sudeste, comum entre os homens. Nas três cidades, outras 4,1 mil famílias passaram a receber o benefício, mas todas ainda dependem dele.
As três famílias vivem no Nordeste rural, chamado pela socióloga Sonia Rocha de "núcleo duro da pobreza no Brasil", uma classificação assumida pelo próprio Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), responsável pelo Bolsa Família. A secretária nacional de Renda de Cidadania do MDS, Lucia Modesto, diz que o "núcleo duro" da pobreza é o mais difícil de ser quebrado, fato já constatado na experiência chilena (Chile Solidário), anterior à brasileira.
Maria José ganhou uma apertada casinha de dois dormitórios como parte dos esforços para a erradicação da doença de Chagas. Na mais pura tradição dos puxadinhos das favelas cariocas, a família acoplou a ela mais dois dormitórios e um banheiro rústico, tudo sem reboco. Uma nova cisterna para captar água da chuva veio no mesmo pacote. A velha casa de taipa (caibros e ripas com barro socado), que deveria ter sido demolida como prevê o combate ao besouro transmissor da doença (barbeiro), permaneceu de pé. Serve de despensa e cozinha, com seu velho fogão a lenha. O fogão a energia solar, ganho de uma ONG regional (Instituto Xingó), tem ares de pouco uso, guardado no que deveria ser a cozinha, inacabada, para dar mais espaço à família.
Não há geladeira, televisão, telefone ou eletrodomésticos, apesar de a energia elétrica ter chegado há mais de quatro anos. Não há também camas, só velhos colchões, e nem armários nos quartos. Maior sonho? "É tanta coisa que se eu for dizer leva a tarde toda", titubeia Maria José, para então completar: "Uma geladeira." Faz todo sentido. Hoje, os velhos caibros da casa velha servem de varal para secar e armazenar as tripas de boi que, apesar de acossadas pelas moscas varejeiras, serão ao longo da semana a principal fonte de proteína animal da família junto com a pouca carne trazida da feira.
Dependendo do dia, a casa pode ter 11, 15 ou mais moradores, começando pela matriarca, Alta Maria da Conceição, idade desconhecida de todos, inclusive dela própria. "Mãe não tem documento", justifica Maria José. Os oito filhos menores, quatro gêmeos, ainda moram com os pais, mas os outros estão sempre perto, inclusive uma filha casada com criança e marido desempregado. "Seu" Antonio Rosa de Jesus trabalha por diária (R$ 20) em uma fazenda, mas vai quando quer e vai cada vez menos.
Maria José ainda faz vassouras com palha de pindoba (tipo de palmeira), mas a demanda só diminui. A pequena roça garante feijão para os humanos e milho para os poucos bichos quando a chuva ajuda, como este ano. Garantir as crianças na escola para não perder o Bolsa Família é a grande preocupação de todos.
Em uma casinha de porta e janela atrás de um galpãozinho precário à margem da rodovia AL-220, na localidade rural de Sítio Cachoeirinha, município de São José da Tapera (5.424º lugar no ranking do IDH municipal), Alagoas, mora Joselma dos Santos, 24, com o marido Rogério dos Santos, 26, e dois dos três filhos (Márcia, 5, e Rogério, 3). Valdemir, 8, do primeiro casamento, mora com a avó materna em uma casa próxima.
Há quatro anos Joselma estava grávida de seis meses do pequeno Rogério, o marido trabalhava como boia-fria em Tocantins, e ela evitava ir ao médico porque, sem dinheiro para condução, precisava caminhar seis horas para chegar ao posto de saúde. Sua renda segura era apenas R$ 30 do antigo Bolsa Alimentação. É outra cadastrada em situação de pobreza extrema.
Apesar de a insegurança ser a mesma, houve progresso na vida da família, que parou de crescer porque Joselma teve que fazer ligadura de trompas, pois não conseguia ter filhos de parto normal. Uma boa safra na roça em 2008, o preço favorável do feijão colhido e algum retorno das viagens de Rogério permitiram ao casal comprar geladeira, televisão (com parabólica) e aumentar a casa, agora com três quartinhos (sem portas), sala, cozinha com fogão a gás e banheiro com pia e vaso de louça.
Com a venda de um terreno adquirido com o dinheiro da safra, Rogério comprou uma moto seminova. Há três anos, abriram uma vendinha de bebidas no galpão da frente, mas a receita líquida de R$ 100 por mês, em média, não dá para pagar a prestação de R$ 208 do freezer e a loja ameaça tomá-lo.
Joselma está insatisfeita com a qualidade da escola das crianças, mas o lado da saúde melhorou muito. Um posto de saúde da família foi aberto a cerca de uma hora de caminhada ou a poucos minutos de moto. Ela diz que as consultas precisam ser marcadas com 15 dias de antecedência, mas em casos de gravidez ou de doença grave, o médico vai à casa. O que preocupa mais é a falta de perspectiva: ou sorte na roça, ou a migração temporária de Rogério. "Tô pensando em ir em dezembro", diz ele.
Quem já foi e não sabe se volta é Marlúcia Aureliana do Nascimento que há quatro anos morava com o marido e cinco filhos em Campinas do Castro, povoado a 24 quilômetros da sede do município de Cícero Dantas, Bahia. Agora, separada, está colhendo laranjas em Tabatinga, região de Araraquara, oeste paulista. Levou quatro dos filhos e um neto. O filho menor, de seis anos, ficou com a avó materna.
Marlúcia seguiu uma tradição comum entre os homens da região. Eles vão, trabalham como boia fria por oito meses com carteira assinada e muitos voltam para aproveitar o seguro-desemprego nos outros quatro meses do ano. Ela fez o mesmo no primeiro ano. Localizada por telefone, disse que não sabe se voltará a sua terra em fevereiro, término do contrato.
Ela admite ficar se for incluída entre os empregados do pomar que permanecem no emprego, cuidando da terra entre uma safra e outra. Já fez um curso de culinária e outro de costura (para fazer bichos de pelúcia). Não achou nada na primeira carreira e não gostou da segunda. "Eu queria fazer lençóis, toalhas, essas coisas. Bichinhos de pelúcia, não gostei."
Maria recebe R$ 150 do Bolsa Família do cadastro mantido na Bahia. Ganha por produção no laranjal, de R$ 200 a R$ 300 por quinzena porque não consegue ter a produtividade dos mais experientes. A filha mais velha também trabalha na colheita e o ex-marido dá uma ajuda. Paga R$ 150 de aluguel de uma casa de quarto, sala, banheiro e cozinha e, segundo sua mãe, manda R$ 150 por mês para pagar uma dívida que deixou na Bahia.
Ela não compra móveis para a casa porque espera retornar para Campinas do Castro, mas não consegue juntar dinheiro para voltar em situação melhor e sabe que não terá trabalho na sua terra. As crianças, gêmeos de 11 anos, estão na escola em Tabatinga, o que dificulta o regresso. José, de 17 anos, estuda à noite. Marlúcia acorda às 4 horas da manhã e só volta para casa à noitinha. "Tem gente que pensa que a gente só vem [para o sul] pra curtir. Só Deus sabe o sofrimento".
Valor - Chico Santos, de Poço Redondo (SE), São José da Tapera (AL) e Cícero Dantas (BA)