Em ano pré-eleitoral, o governo editou portaria que permite a prefeituras e ONGs assinarem contratos para receber verbas federais mesmo se estiverem inadimplentes. A medida possibilita aos ministérios prorrogar, sem limitações, o prazo para a prestação de contas. Primeiro a tirar proveito da flexibilização, o Ministério das Cidades prorrogou por mais 120 dias convênios pendurados desde o ano passado. O procurador da República Marinus Marsico, que atua junto ao Tribunal de Contas da União, criticou a medida: “A portaria vai tornar mais fácil a vida das ONGs e dos municípios e dificultar ainda mais a fiscalização. O controle dos convênios, que já é muito difícil, ficará quase impossível." O Ministério do Planejamento negou que vá afrouxar a fiscalização.
Verba mais fácil para prefeituras
Às vésperas das eleições, governo afrouxa exigência de prestação de contas e alega "melhoria de gestão"
O GLOBO - Leila Suwwan
Em ano pré-eleitoral, o governo federal abriu uma brecha para flexibilizar ainda mais a celebração de convênios e contratos para repasse de recursos a prefeituras e ONGs inadimplentes. Uma portaria editada há 12 dias permite que cada ministério prorrogue - pelo tempo que desejar, e sem limitação - o prazo para cumprimento das exigências de prestação de contas do uso de verbas federais. Na prática, a portaria permite às prefeituras assinar e divulgar atos e ainda manter as verbas reservadas no Orçamento da União. Caso contrário, os contratos com órgãos federais deveriam ser extintos, e os beneficiados não poderiam mais receber os repasses da União.
A portaria flexibilizou as regras editadas pelo próprio governo em 2008. A regulamentação dos convênios estabelece a necessidade de a prefeitura estar adimplente e apresentar plano de trabalho, licença ambiental e prova de regularidade fundiária. Mas, é permitido deixar todos esses itens para cumprimento posterior à assinatura dos contratos. Apenas as liberações financeiras ficam travadas, à espera do atendimento das exigências. Isso impede, por exemplo, o redirecionamento dos recursos federais para outras ações.
A mudança na regra foi editada por portaria interministerial, assinada pelos ministros Paulo Bernardo (Planejamento), Guido Mantega (Fazenda) e Jorge Hage (Controladoria Geral da União) e publicada no Diário Oficial da União de 26 de agosto. Permite que cada pasta prorrogue o prazo para cumprimento das exigências, com as devidas adequações no plano de trabalho. Não ficou claro que tipo de mudanças podem ser feitas. Em tese, até o local do projeto poderia mudar.
A situação de espera para cumprimento de exigências em um convênio não impede a prefeitura de assinar outros contratos com o governo federal. Antes mesmo dessa portaria, projetos do PAC e ações sociais já estavam excluídos da exigência de adimplência nas prestações de contas.
Medida é fruto de pressão política
O Ministério das Cidades foi o primeiro a tirar proveito da flexibilização e concedeu mais 120 dias para convênios pendurados desde o ano passado. Já garantiu a continuidade de projetos datados de 2008, que totalizam R$56,3 milhões - muitos deles financiados por emendas parlamentares. Apesar de se tratar de recursos públicos, o ministério mantém a lista das prefeituras ou bases eleitorais beneficiadas em sigilo. A assessoria alega que o objetivo é "evitar problemas políticos".
O governo sequer sabe o impacto potencial da medida, fruto de pressões políticas de prefeitos, parlamentares e ministros. No momento, o Sistema Nacional de Convênios (Siconv) não permite pesquisar quantos contratos estavam ameaçados de cancelamento por falta de prestação de contas.
Um dia depois de prorrogar os prazos, o ministro das Cidades, Márcio Fortes, comemorou o feito durante uma oficina de gestão pública em Bauru (SP), em 28 de agosto. Ele pediu aos prefeitos que já se preparem para o PAC 2.
- É importante que os prefeitos já comecem a preparar, junto com seus técnicos, novos projetos para que as obras evoluam ainda mais rápido - disse Fortes.
De acordo com dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), o Ministério das Cidades utilizou esse mesmo tipo de prorrogação antes da implantação das novas regras para convênios e repasses, em 2008. Em 2006, enquanto debatia a questão com o Tribunal de Contas da União (TCU), editou a portaria 202 para garantir a validade de mais de 1,7 mil contratos que deveriam ser suspensos por falta de cumprimento das condições estipuladas. Na época, isso abrangia mais de R$1 bilhão em recursos. Em 2007, a portaria 232 prorrogou os efeitos da primeira.
O PAC-Cidades também foi objeto desse tipo de flexibilização. Em junho deste ano, porém, a pasta avisou que não haverá mais prorrogações para os projetos de saneamento e habitação assinados entre janeiro de 2007 e junho de 2008, e que ainda estavam com prestações de contas pendentes.
O Ministério do Planejamento não informou que pastas pressionaram pela mudança nas regras. Citou apenas "diversas consultas". E negou que a medida pudesse afetar a fiscalização. "O governo decidiu dar mais flexibilidade aos ministérios para decidir quando aceitar o cumprimento das condições. Isso, no entanto, não significa redução no controle, apenas há uma melhoria na gestão dos diferentes casos", diz nota da assessoria.
De acordo com a Controladoria Geral da União (CGU), a iniciativa de mudança foi do Planejamento. "A CGU não recebeu diretamente as reivindicações dos ministérios com dificuldades em cumprir os prazos". A decisão dos prazos foi repassada às pastas devido às especificidades de cada setor.
Os convênios e repasses voluntários da União são uma antiga dor de cabeça do governo, e há resistências para a implantação de novas normas moralizadoras. Esse instrumento movimenta mais de R$40 bilhões por ano. Uma das principais falhas era a falta de checagem das prestações de contas, o que levou o governo a arquivar, em 2007, todos os processos dos contratos de menos de R$100 mil. Porém, a pilha de processos sem análise continua se acumulando na Esplanada.