Depois de 13 anos praticamente exterminada, indícios apontam que está de volta a “máfia dos papa-defuntos”, que assim ficou conhecida por conta da disputa entre funerárias na porta de hospitais e do Instituto Médico Legal (IML). Na semana passada, funcionários de duas funerárias chegaram a se agredir fisicamente no estacionamento do Hospital João Alves Filho. Além disso, existe a denúncia de que funerárias e servidores de órgãos públicos estão vendendo para familiares a colocação de formol nos cadáveres, prática que só pode ser autorizada por um médico. Esta semana, o diretor do IML, Avercílio Bezerra, proibiu o embalsamento de corpos no local.
A “máfia dos papa-defuntos” foi amplamente divulgada pelo JORNAL DA CIDADE em abril de 1996. O problema foi solucionado com a criação de um plantão das funerárias. Mas agora o plantão vem sendo boicotado constantemente. O presidente do Sindicato das Funerárias do Estado de Sergipe, Firmino Ferreira dos Santos, disse que das 14 empresas do ramo existentes em Aracaju, dez estão inseridas no plantão, que funciona como um rodízio diário entre elas nos hospitais e no IML.
“O único plantão que funciona corretamente é o do Hospital de Cirurgia. Lá sempre foi organizado. É o Serviço Social que encaminha a família até a gente, se ela quiser fazer os procedimentos com a funerária que está de plantão. Ninguém é obrigado, evidentemente. No Hospital João Alves a gente fica solto, sem acompanhamento da direção e do Serviço Social, ainda naquela situação de abordar a família e isso é horrível. O IML é o que mais dificulta nosso trabalho, não deixa mesmo a gente se aproximar da família”, disse Firmino.
O proprietário de uma funerária, que preferiu não se identificar, disse que funcionários do IML que trabalham no rabecão recolhem os corpos no interior e trazem direto para algumas funerárias em Aracaju. “Os funcionários envolvidos nisso ganham 20% de comissão, variando de R$ 40 a R$ 300, a depender do valor do funeral. Funcionários do Hospital João Alves são os mais viciados nessa prática. No Serviço Social eles indicam as funerárias que eles querem, barrando o trabalho da gente”, denunciou um empresário do ramo.
Ele disse que há cerca de um ano não consegue pegar um funeral nos plantões feitos nas portas dos hospitais e do IML. “Mando os agentes para lá, mas eles não conseguem nada. Os serviços que eu pego são de pessoas conhecidas, que me procuram na própria funerária. O sindicato deveria fiscalizar quem não cumpre o plantão e punir a funerária tirando a mesma da tabela”, opinou o empresário. Já o presidente do sindicato ressaltou que há mais de dez anos tenta moralizar o serviço, mas não tem o apoio da categoria. “Alguns querem que vire bagunça, que fique como antes: as funerárias disputando a tapa os cadáveres”, lamentou Firmino.
Explicações
A diretora Administrativa do Hospital João Alves Filho, Cristiane Prado Menezes, disse que a briga entre agentes funerários ocorrida no estacionamento, na semana passada, foi presenciada por um vigilante, que acionou o coordenador do necrotério. “Tomamos todo o cuidado para não acontecer o que havia no passado. Esses agentes funerais são vorazes mesmo, mas não queremos entrar nessa discussão com as funerárias. Queremos apenas facilitar o acesso delas às famílias que perderam seus entes queridos e devem ser atendidas com a maior qualidade possível”, opinou Cristiane, lembrando que qualquer denúncia de irregularidade deve ser feita à Ouvidoria do hospital, pelo 3216-2646.
A diretora do hospital disse ainda que não tem como controlar a entrada das funerárias e que o sindicato não vem mandando para o hospital a escala do rodízio. Quanto ao Serviço Social, Cristiane explicou que existe um trabalho em conjunto com as prefeituras do interior. “Se o paciente do interior morre e tem problema para financiar o caixão, o Serviço Social liga direto para as funerárias que já são cadastradas às respectivas prefeituras”, informou a diretora, acrescentando que com a reforma do hospital, prevista para ser concluída em cinco meses, a entrada das funerárias ficará mais rigorosa e o necrotério terá uma sala de espera e outra para arrumar os defuntos.
Já o diretor do IML, Avercílio Bezerra, falou que não tem conhecimento que funcionários do órgão estejam recebendo comissão para encaminhar os corpos para funerárias pré-determinadas. “Se souberem quem são os servidores envolvidos que façam a denúncia por escrito para ser apurada pela Comissão Disciplinar. Também acho difícil que os corpos sejam levados pelo rabecão para as funerárias porque dois dos nossos quatro carros agora têm chip e pelo GPS a gente acompanha o trajeto”, enfatizou Avercílio.
No Hospital de Cirurgia o esquema de rodízio das funerárias vem dando certo porque a tabela é cobrada e acompanhada pelo Serviço Social. “Depois que cresceu o número de pessoas com planos funerários, esse problema dos papa-defuntos praticamente acabou. Não existe mais esse direcionamento. Naquela época, o paciente não tinha nem morrido e as funerárias já estavam disputando a família. A solução da escala trazida pelo sindicato nos ajudou muito. A gente tenta manter o controle para não haver problema nem para gente e nem para a família, que já está em uma situação bem delicada. Esse assunto aqui é tratado da forma mais humanizada possível”, garantiu Suely Duarte, coordenadora do Serviço Social do Cirurgia.
50% de comissão
A matéria “Máfia dos papa-defuntos age nos hospitais da cidade” foi publicada pelo JORNAL DA CIDADE no dia 21 de abril de 1996. Na época, a denúncia foi feita pela proprietária de uma funerária que fazia parte do esquema e tinha até a chave do necrotério do Hospital João Alves Filho. Ela contou que resolveu sair porque ficou “comovida pelo sofrimento das famílias diante da disputa dos seus mortos”. Por conta disso, ela foi até ameaçada de morte.
Os “papa-defuntos” chegavam a receber até 50% de comissão das funerárias e ficavam principalmente no Hospital João Alves e no IML cercando os parentes dos mortos. Até taxistas eram envolvidos no esquema, cobrando aos donos das funerárias a corrida dos familiares dos mortos. Os “papa-defuntos” circulavam dentro do hospital e monitoravam até doentes terminais. Com a ajuda de funcionários das unidades hospitalares, descobriam o endereço dos familiares do morto e eles mesmos davam a notícia do óbito, inclusive no interior do Estado.
Assim, as famílias eram pegas de surpresa e as mais humildes obrigadas a assinar papéis e assumir compromissos com as funerárias, que nem sempre podiam honrar depois. Em abril de 1996, a dona de uma funerária que fez as denúncias chegou a ser ameaçada de morte. A Secretaria de Segurança Pública intermediou uma negociação entre as funerárias e o sindicato, criado naquela mesma época, organizando uma escala de plantão na portas dos hospitais e no IML.
Cobrança pelo formol
A abordagem a famílias de mortos por parte de “papa-defuntos” e funcionários do Hospital João Alves Filho, que alegam a necessidade de conservação do corpo com formol, foi outra denúncia feita pelo dono de uma funerária de Aracaju. No Instituto Médico Legal (IML), a prática foi proibida pelo diretor Avercílio Bezerra, esta semana, após matéria divulgada pelo JORNAL DA CIDADE. Na notícia, o diretor da Coordenadoria Geral de Perícias (Cogerp), Adelino Costa Lisboa, dizia que médicos legistas não podiam usar o prédio público para fazer trabalho particular, chegando a cobrar R$ 1,5 mil por cada embalsamento.
“Necroteristas, vigilantes e pessoas do Serviço Social do Hospital João Alves estão envolvidos em um esquema de injetar formol nos cadáveres sem necessidade. Chegam para a família inocente, utilizando o nome de algum médico, e dizem que é preciso colocar formol para conservar o corpo. Tem três ou quatro funerárias fazendo isso também. Cobram de R$ 200 a R$ 300”, disse o proprietário de uma funerária, que preferiu não se identificar. O presidente do Sindicato das Funerárias do Estado de Sergipe, Firmino Ferreira dos Santos, disse que tomou “algum conhecimento” sobre isso.
Ele argumentou que não há como o sindicato fiscalizar se está acontecendo essa prática. “Quando há a necessidade de usar o formol tem que ser tudo documentado. E somente no caso de viagem ou quando vão demorar a enterrar o corpo. Vai que eu mando colocar e amanhã tem a necessidade de fazer uma exumação? O corpo estará todo envenenado. Quem vai assumir a responsabilidade?”, questionou Firmino. Ele não quis confirmar se a colocação de formol vem ocorrendo de maneira indiscriminada nos cadáveres, mas disse que algumas funerárias cobram um salário mínimo para fazer a técnica sem autorização.
A diretora Administrativa do João Alves Filho, Cristiane Prado Menezes, disse que o hospital não coloca formol nos cadáveres. “Não posso comprometer funcionários antigos por um simples disse-me-disse. Se isso estiver ocorrendo, deve ser denunciado à Ouvidoria do hospital, com os respectivos nomes para que seja aberto um inquérito administrativo”, informou Cristiane, lembrando que toda saída de corpos do necrotério é anotada no livro de ordens de ocorrência, constando data e horário. A partir daí, a responsabilidade pelo corpo não é mais do hospital.
Jornal da Cidade - Texto: Janaina Cruz / Foto: Jorge Henrique